Alberto Gonçalves
Felizmente o dr. Rio dá uma ajuda: a
comissão de honra e a lista de apoios declarados, repletos do pior entulho
oligárquico que o partido produziu em décadas, são quase um manifesto favorável
ao rival
Domingo
Quarenta anos após o 25 de novembro
de 1975, que nos apresentou a um regime ligeiramente similar às democracias
civilizadas, um golpe de sentido inverso subverteu os resultados eleitorais e
convidou dois partidos comunistas a partilhar o poder. Em quase toda a parte, a
ascensão de forças totalitárias é um alarme e uma aflição. Em lugares exóticos,
é motivo de celebrações: a 26 de novembro de 2017, o governo achou que a
concessão do país à prepotência material e à indigência mental merecia um
“evento” especial e o “evento”, uma sessão de perguntas ao primeiro-ministro a
cargo de “espontâneos”, aconteceu.
Como é natural, a comemoração
de uma fraude, ou de dois anos de sucessivas fraudes, merecia ser assinalada
através de nova fraude. O controlo dos “media” ainda não é o suficiente para
esconder que os “espontâneos” eram, afinal, figurantes contratados, as
perguntas eram gentilmente combinadas e as respostas, de facto temerárias
incursões do dr. Costa pela língua portuguesa, eram uma encenação pelintra. Um
vídeo, publicado no Observador, exibiu as atividades dos senhores ministros
durante o circo: remover cera dos ouvidos, dormir, tirar macacos do nariz,
brincar com o telemóvel, comer os macacos.
Foi, em suma, um espetáculo de
propaganda típico da Bolívia com que muitos sonham. E foi, dentro do subgénero
Propaganda Boliviana, um espetáculo bonito. A única dúvida é perceber quem saiu
mais dignificado do mesmo. Talvez o governo, generoso a ponto de esbanjar a
réstia de vergonha que nunca demonstrou possuir. Ou os figurantes, gente tão
feliz e honrada que se vende a intrujões por trocos e merenda. Ou as
televisões, que ávidas de informar transmitiram a farsa depois de a farsa ser
exposta. Ou Portugal em peso, que podia estar a imitar nações a sério e está
nisto.
Terça-feira
O dr. Centeno, especialista em
fazer aos macacos do nariz aquilo que, nas horas vagas, faz aos rendimentos dos
cidadãos que não trabalham para o Estado, é candidato a liderar uma coisa
chamada Eurogrupo. O dr. Centeno concorre contra criaturas do Luxemburgo, da
Eslováquia e da Letónia. Por sorte, e engenho, a vitória do dr. Centeno parece
assegurada, talvez porque a nossa dívida pública é incomensuravelmente superior
à dos pobres rivais, talvez porque alguém tem de ir lá parar.
Certo é que, como tudo o que
cheire a cargo internacional, inclusive os que não possuem nenhum peso ou
implicam mérito além da obscuridade periférica e “imparcial”, o país oficial e
oficioso derrete-se com façanhas assim. Por algum motivo, convencionou-se que
despejar, a título de penduricalho, um compatriota em lugar de “prestígio” é
desculpa para cada português entrar em delíquio nacionalista. Mesmo quando o
lugar de “prestígio” era desconhecido de toda a gente meia hora antes e o
compatriota disputa o cargo com portentos igual e radicalmente anónimos.
Descontado o pasmo dos
pategos, não acho mal. Em princípio, aprovo qualquer pretexto para pegar numa
“personalidade” indígena e despejá-la bem longe (embora não faça alarde disso,
fui um entusiasta do envio do eng. Guterres para os campos de refugiados e para
Nova Iorque, não necessariamente por esta ordem). O problema é o cargo em
questão ser, ao que consta, cumulativo, pelo que o dr. Centeno manterá as
funções caseiras que tantas alegrias proporcionam aos jornalistas da RTP e da
TVI. E, ainda que não mantivesse, o dr. Costa seria perfeitamente capaz de o
substituir sem subir o nível do titular nem baixar a dívida. Caso o dr. Centeno
ganhe, esta é daquelas situações em que mais ninguém ganha.
Quarta-feira
O PSD tem muito menos encanto
na hora da despedida de Pedro Passos Coelho. Terminada a vigência desse homem
afinal tão decente que se calhar passou por aqui ao engano, o que sobra? Sobra,
pelos vistos, o socialismo nem por isso envergonhado de Santana Lopes e de Rui
Rio, sobre os quais não é fácil arranjar um argumento que os distinga.
Felizmente, o dr. Rio dá uma ajuda: a sua comissão de honra e a sua lista de
apoios declarados, repletos do pior entulho oligárquico que o partido produziu
em décadas, são quase um manifesto favorável ao rival. Nomes como Ângelo
Correia, Manuela Ferreira Leite, Couto dos Santos e Ferreira do Amaral, isto
para não falar das paixões assumidas de Pacheco Pereira ou daquele sr. Capucho,
são, ou parecem ser, razões sucessivas para um optimista achar que, apesar de
tudo, o PSD ficará mais bem servido com o embaraçoso dr. Santana. Mas um
realista percebe que o país está desgraçado.
Quinta-feira
Não tenciono elogiar Belmiro
de Azevedo. Por um lado, porque não venero ou abomino homens de negócios.
Empresários a sério, por oposição aos espécimes que usam o epíteto, mas não
largam o Estado, agem por interesse próprio e deixam que os efeitos secundários
do seu trabalho aconteçam naturalmente e não se prestem a grandes juízos de
valor – e assim é que deve ser. Por outro lado, não é preciso elogiar Belmiro
de Azevedo na medida em que os partidos comunistas com representação
parlamentar já se encarregaram disso. Ao negar, por oposição assumida ou
abstenção cobardolas, o voto de pesar na AR, PCP e BE prestaram ao dono da
Sonae a maior homenagem possível: é bom que uma pessoa parta entre o amor dos
que lhe são próximos, e o ódio dos que lhe são distantes. Ser detestado, até na
hora da morte, por uma corja devota de tiranos e tiranias é sinal de que, nas
horas da vida, se fez alguma coisa bem-feita. Será com certeza o caso.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
2-12-2017
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