José Manuel Fernandes
Em Portugal não há corruptos. Há vítimas do
Ministério Público e das violações do segredo de Justiça. Seria patético se não
fosse trágico e sinal de que há um alvo a abater: a PGR Joana Marques Vidal.
1. Foi a cereja em
cima do bolo. A cereja por que se aguardava. Afinal tudo aquilo a que temos
assistido nos últimos dois ou três anos, tudo aquilo a que assistimos na última
semana não tem tido nada a ver com o “domínio da investigação ao crime”, antes
com o “domínio da perseguição a alvos seletivos”. José Sócrates dixit.
Naturalmente que esse “alvo seletivo” é ele próprio ou um juiz amigo, o único
de dezenas de juízes que intervieram até agora na Operação Marquês que deu
razão a um recurso do antigo primeiro-ministro. Naturalmente que, para ele, a
Operação Lex, em que é suspeito um magistrado com um estilo de vida bem acima
dos seus rendimentos conhecidos – les bons esprits se reencontre… –,
é por isso uma mera replicação do processo Marquês ou do caso Face Oculta,
aquele em que já foi condenado na primeira instância em acórdão confirmado pela
Relação um seu outro amigo, o inevitável Armando Vara.
O que incomoda José Sócrates
são as violações do segredo de justiça. O que incomoda José Sócrates é o que se
escreve nos jornais e se ouve nas televisões.
A mim não é isso que me
incomoda. O que me incomoda é a confirmação de que a corrupção não é o “mito
urbano” que alguns dizem ser, antes um mal que corrói profundamente o regime,
tocando os seus níveis mais elevados (um ex-primeiro-ministro, um ex-ministro,
dois juízes desembargadores, um alto quadro do Ministério Público, o mais
importante banqueiro do país, só para citar os exemplos mais gritantes). O que
me incomoda é que muitos destes personagens viviam (e exibiam-se) como se
beneficiassem de uma qualquer “impunidade soberana”. O que me incomoda é que
muitas das suspeitas que levaram agora as autoridades a agir não eram recentes,
bem pelo contrário, acontecendo porém que até há bem pouco tempo o nosso
sistema de Justiça e de investigação criminal mais depressa se vergava perante
os poderosos do que se preocupava com a sua missão (não foi assim há tanto
tempo que à frente desse sistema estiveram figuras como Noronha do Nascimento e
Pinto Monteiro).
Mas o que me incomoda ainda
mais é o coro que já se estabeleceu e que tem como alvo o Ministério Público –
um Ministério Público dirigido por uma Joana Marques Vidal — pessoa com quem
nunca falei na vida — que fez a diferença relativamente aos seus antecessores,
uma responsável que termina o seu mandato no Outono e demasiada gente não quer
ver reconduzida.
2. O coro dos
indignados começa, curiosamente, com gente situada na extrema-esquerda. É o
caso de Francisco Louçã, que aproveitou o caso Centeno para investir a eito. Sem surpresa, pois o antigo líder do Bloco
de Esquerda tem da Justiça uma visão instrumental, interessando-lhe mais saber
se quem cai nas suas malhas é um amigo político (no caso, Lula da Silva), do que verificar se esta tratou todos os
políticos com o mesmo rigor. Os políticos e muitos empresários, pelo que ser de
esquerda não pode ser desculpa.
Pelo mesmo diapasão alinharam
tanto Daniel Oliveira como, sem surpresa, o mais zeloso editorialista do Diário de Notícias.
Dúvidas muito semelhantes levantou Miguel Sousa Tavares, que só lamento ter levado tanto tempo
a perceber de que massa era feito José Sócrates e que nunca digeriu bem o que
se passou no grupo Espírito Santo. Ou Pedro Adão e Silva e o seu inseparável eco.
Adão e Silva, mesmo
reconhecendo as virtudes de uma investigação judicial mais ativa, não deixa,
contudo, de dar o mote: “Quando o país assiste a uma ofensiva judicial sem
precedentes, não é possível deixar de temer esta hegemonia do tempo judicial”.
Ou seja, assistimos ao regresso do fantasma da judicialização da política, um
fantasma que até alguém ponderado como Francisco Assis já invocou – mas a propósito de Lula e
do Brasil.
Mas se aqui ainda há alguma
preocupação com um discurso racional, quando passamos para as divisões inferiores
do debate público o desvario instala-se e as intenções tornam-se transparentes.
O exemplo mais eloquente foi a partilha no Facebook por um deputado socialista
muito próximo do primeiro-ministro, Porfírio Silva, de um post em que se
defendia que o simples facto de o Ministério Público ter aberto um inquérito ao
caso dos bilhetes para o futebol de Mário Centeno era razão suficiente
para ademissão da procuradora-geral da República. Isto porque um tal Francisco
Clamote, aparentemente jurista, escrevera que essa investigação representaria
“um insulto à democracia portuguesa e uma vergonha para o Ministério Público”.
Nada mais, nada menos. (Recorde-se que esse mesmo Clamote já defendera “uma
vassourada no Ministério Público” aquando das demissões dos três secretários de
Estado que tinham ido ao Euro 2016, e que Porfírio Silva também subscrevera
essa opinião.)
3. Mas vamos
separar as discussões para que, no nevoeiro que se está a criar, não se misture
o que não deve ser misturado. E as discussões são várias. A primeira é
naturalmente sobre o Ministério Público que queremos ter. A segunda sobre se
existe realmente um risco de judicialização da política. E a terceira sobre o
acerto ou desacerto da investigação a Mário Centeno.
Começo pelo Ministério Público
porque a sensação que tenho, e não sou só eu, é que abriu a caça a Joana Marques Vidal.
E, por interposta dirigente, ao estilo de ação mais independente e mais proativo
da magistratura do MP no seu mandato.
Nunca achei que, por haver
separação de poderes, não se pudesse criticar o Ministério Público ou deixar
sem escrutínio as decisões dos juízes. Tudo o que houver a ser dito deve ser
dito, nomeadamente falhas graves de magistrados, como a que recentemente, por
via da reação burocrática a uma queixa de violência doméstica, não evitou a
morte da mulher que se tinha vindo queixar, mas que não encontrou eco nem proteção.
É apenas um exemplo entre muitos, que por certo se encontrarão a muitos níveis
de atuação do MP.
Por isso critiquei muitas
vezes, no passado, a atuação de outros PGR, de Cunha Rodrigues a Pinto
Monteiro, passando por Souto Moura. Mas tal como então o fiz não posso deixar
de elogiar o perfil discreto, nada mediático, de Joana Marques Vidal e a forma
como um MP que antes parecia ter-se transformado no arquivador-geral de
República quando estavam em causa poderosos agora tem agido sem sinais de temer
“os de cima”.
Tenho por isso duas coisas por
certas. A primeira é que todos os erros, mesmo micro erros, que puderem ser
assacados ao Ministério Público serão usados para tentar descredibilizar a
liderança de Joana Marques Vidal. Há muita gente, e gente muito poderosa, que
foi incomodada pelo MP nos últimos anos, e é gente que não perdoa.
A segunda é que, não sendo nem
a recondução, nem a substituição, de Joana Marques Vidal uma decorrência direta
de lei, antes um ato de discricionariedade política, o que suceder no caso de
ela ser substituída estará sob severo escrutínio. Não quero, não queremos, um
regresso ao passado.
4. Portugal corre um
risco de judicialização da política? Não: Portugal está, porventura pela
primeira vez, a perseguir casos de corrupção como não fazia no passado. Num
quadro legislativo que nem é o mais favorável (não temos o estatuto de “delação
premiada”, mas nem entro nesse debate), mas com resultados palpáveis. Há casos
que foram investigados, que passaram pelo crivo da instrução, que chegaram aos
tribunais e resultaram em condenações, algumas delas já definitivas.
Estão os magistrados a
investigar e a julgar em função de uma agenda política? Não creio. Basta vez
como o seu trabalho já abalou vários partidos, e a vários níveis de
responsabilidade.
Finalmente querem os
magistrados proceder a uma limpeza redentora, como noutros tempos quiseram
alguns magistrados italianos ou espanhóis, os quais até se deixaram depois
tentar pela política? Para ser sincero acho que estivemos mais perto disso no
tempo de Cunha Rodrigues.
Em Portugal não somos todos
corruptos, mas não só temos uma cultura que facilita o amiguismo, a cunha e o
favor, como nalguns casos enfrentámos mesmo casos de corrupção ao mais alto
nível. É uma realidade a que não podemos fechar os olhos – e é ela que me leva
ao último ponto, o caso Centeno.
5. Vou começar por
contar uma pequena história. Aqui há uns 60 anos um jovem secretário de Estado
levou o seu filho a uma prova hípica em Cascais para a qual tinha sido
convidado. Também lá estava o Presidente da República que perguntou quem era
aquele menino. Quando soube com quem ele viera, chamou o jovem governante e
disse-lhe apenas que “filho de ministro não é ministro”.
O menino desta história é
Marcelo Rebelo de Sousa, o governante era o seu pai Baltazar. Tudo se passou
num tempo em que Portugal vivia em ditadura, mas o episódio revela-nos um grau
de exigência com os deveres da governação que os zelotas de hoje se apressarão
a considerar demasiado rígido. Eu, por mim, tenho pena que em democracia
sejamos menos rigorosos e que, mesmo integrados na União Europeia, olhemos para
os países do Norte com a inveja de quem é pobre e o desprezo de quem os vê como
fundamentalistas em termos éticos.
Como já disse, o caso Centeno não justifica a sua demissão e nunca me pareceu que
fosse crime. Mas foi bom que o Ministério Público esclarecesse em poucos dias
esse assunto, colocando uma pedra sobre o assunto. Noutros tempos, com outra
maioria ou outro governante, estaríamos a estranhar (e a criticar) a celeridade
do Ministério Público; com esta maioria e este ministro estamos (estão os
zelotas) a criticar os que se atreveram a importunar o novo deus do nosso
mísero Olimpo.
E foi bom por dois motivos.
Primeiro, porque é melhor investigar, esclarecer e ilibar do que deixar uma
dúvida a pairar. Melhor para quem investigue, que cumpre o seu dever. Melhor
para quem é investigado, que coloca uma pedra sobre o assunto.
Depois, porque permitiu
comprovar que não tendo existido qualquer crime, comprovou que o comportamento
do ministro (que, recorde-se, não só não foi convidado, como se fez convidado e
levou o filho consigo) não está de acordo com o código de ética aprovado pelo
Governo ao exceder o seu limite de 150 euros para prendas. Detalhes, bem
sei, mas detalhes que é bom conhecer.
Por fim, ficámos a saber que
não houve “uma natureza indevida de vantagem” pois a aceitação dos convites
representa uma prática “socialmente adequada e conforme aos usos e costumes”.
E é isto que me
incomoda: os “usos e costumes” que tornam lícito e aceitável um ministro das
Finanças solicitar convites ao presidente de um clube de futebol,
sobretudo quando se sabe o pouco frequentáveis que os meios do futebol são.
Alguém imagina os mesmos “usos e costumes” num país nórdico ou mesmo no mais
próximo Reino Unido?
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