Aparecido Raimundo de Souza
TODOS OS
DIAS, IMPRETERIVELMENTE, Anastácio repetia aquela cena patética. Escrevia um
bilhetinho e subia até o topo do pau-de-sebo. Bastava se levantar da mesa das
refeições, ia ele, apressado, para o centro do pátio onde outros internos se
amontoavam para o descanso do almoço. A única coisa que o vesano não seguia à
risca, o horário. Às vezes, postergava para depois das onze e meia, às vezes
passava das doze. Todavia, sempre após encher a barriga com a sobremesa que
serviam e o café requentado, punha em ação a sua árdua tarefa. Só isto quebrava
a rotina. No mais, o ato de levar a termo, com tanta e tamanha veemência a sua
esquisitice, de subir ao cume da vara enrijada, não falhava, jamais.
Era assim, há exatamente e precisos seis anos de
internamento naquele sanatório. No geral, somava, com ele, setenta pacientes.
Todos em completo estado de abandono, além da insanidade que os colocava num
planeta à parte e sem volta. Em meio aos debilóides estava Dirceu, um jovem
chegado há dois anos, que pouco se comunicava com seus pares. Gostava de
sondar, registrar e conferir. Passava o dia perdido em pensamentos,
perscrutando o ambiente. Quando não, vigiando um funcionário aqui ou ali, acolá
uma das enfermeiras que atendia na emergência. O mundo, ao redor simplesmente
não existia. Aliás, para ninguém em particular. Sempre que Anastácio se
propunha a empreender a sua jornada, Dirceu o seguia, prudentemente, de longe,
e o engraçado, se disfarçando de todas as formas para não ser visto ou pego de
calças curtas.
E por que ele fazia isso? No meio do pátio, que fronteava
com a sede da administração e do ambulatório, havia um mastro de cocanha maior
que os normais encontrados nas festas de São João e Páscoa. Extremamente liso e
comprido, a peça passava dos dez metros de altura. O bicho se elevava,
empertigado, soberbo, como se fosse um varapau. Em épocas de festas, os
funcionários se reuniam com alguns familiares, colocavam uma prenda no ápice,
geralmente uma boa quantia, depois besuntavam com graxa e a hora que o
responsável pela prova gritava “pode subir”, a galera fazia o diabo para
agarrar o prêmio. Exatamente nessa haste
carrancuda e altareza, que o Anastácio, impreterivelmente trepava, com todas as
forças que o mantinham vivo e em contextura postura. Esse longo acessório, por
rejeição e desmazelo linha paralela, purgava em orfandade. Os funcionários
deixaram de promover as algazarras dos regozijos costumeiros somavam bons
carnavais.
Para piorar seu desuso, cada administração que chegava,
mudava as regras. Por circunstâncias outras, apesar das intempéries, o madeiro
continuava duro e resistente, sendo mantido no lugar e ali se mantinha a mercê
dos extremos climáticos. Antes de
subir, Anastácio colocava o tal do papelzinho no qual havia escrito preso aos
dentes. Empregando, então, um esforço sobrenatural, ia subindo, galgando
centímetro após centímetro, até chegar onde desejava. Às vezes falhava e
escorregava, precisando começar de novo, do zero. Mas não desistia. Era
obstinado, inflexível e contumaz. Assim,
depois de várias tentativas, conseguia, finalmente, galgar o limite máximo. Uma
vez lá, se apressava a espetar sobre um prego, o papel que levava preso à boca.
Havia um amontoado deles, anteriormente encravado, porém,
Anastácio sempre dava um jeitinho e conseguia afixar um a mais. Em seguida
descia escorregando, satisfeito, se flabelava com as mãos em leque e então se
trancava em seu cubículo. Todo santo dia chovesse ou fizesse sol, ia Anastácio
pau acima depositar o minguado de papel no qual escrevia alguma coisa que só
ele saberia explicar. Isso intrigava deveras ao Dirceu, que não perdia as
subidas da criatura. O que, afinal, Anastácio grafava de tão importante, que
não podia haver um dia sem que não interrompesse, por nada nesta vida, aquele
ritual impróprio de precisar depositar o bilhetinho nos cafundórios das
alturas? Seria algum pedido endereçado a Deus? Não! Naquele lugar ninguém
falava de religião. Nenhum pastor, padre, ou qualquer representante de uma
dessas denominações que visitam presídios e casas de repouso apareciam para dar
o ar da graça.
Desde que passara a observar o Anastácio, Dirceu fizera
questão de anotar. Remia seus desatinos naquele fim de mundo, exatos dois
anos. Dois anos. A setecentos e poucos dias sondava
cotidianamente na sua luta, para depois do almoço, ver o cidadão escrever
alguma coisa num papel sujo, empalmar com cuidado e subir até o cimo do bastão
e, uma vez em nível superior, cravar o bilhetinho e empreender o caminho de
volta. Dias um após outro que martelavam a sua cabeça. O que aquela criatura
escrevia? Por que deixar esses papeizinhos no longínquo do inalcançável?
Belo final de lanche da tarde, por volta das três e meia, se
encheu de razão. Seria agora ou nunca. Desvendaria esse dúbio suspeito,
custasse o que custasse. Sua vida inclusive, se necessário. Com esse pensamento
aflorando a curiosidade, ainda que envolto pela loucura, esperou a oportunidade
certa. E ela chegou mais rápido do que esperava. Um dos doentes da ala dos
“trancados” precisou ser levado para o hospital, distante do sanatório, uns
duzentos quilômetros. Declinava uma
sexta-feira conveniente a sua investida e aos propósitos pretendidos. Com essa
emergência às portas, o doente alterado, encadeado numa camisa de força, todos
os demais internados permaneceram em seus respectivos espaços. Enfim, livre o
Dirceu, para tomar no grito o pau-de-sebo e pôr um fim definitivo naquele
excêntricismo do Anastácio. Esgueirando por aqui e ali, espiou o colega de
infortúnio e flagelo.
Anastácio havia acabado de descer fazia pouco, e se achava
enfurnado em seu pequeno cômodo. De resto, tudo em paz. Os enfermeiros, após a
saída do paranoico na camisa de força faziam um lanche, riam e conversavam
animadamente. Os demais insanos e mentecaptos seguiam em suas órbitas de
demências à espera de um possível milagre.
Dirceu alcançou o pátio sem ser perturbado. O pau-de-sebo, senhoril e
monumental parecia desafiá-lo em seu intento.
Pôs-se em guarda. Empreendeu a árdua tarefa de galgar a
compridez do alcantil. Não seria tarefa fácil. Mesmo o Anastácio, acostumado,
às vezes subia um bom naco e, no minuto seguinte, despencava. Com ele não
haveria de ser diferente. Nesse primeiro dia, tentou diversas vezes. Em vão. No
segundo, igualmente os esforços redundaram em fiasco total. Uma semana, nada.
Quinze dias, idem. Engraçado, que Anastácio, sem saber dessa façanha,
continuava escrevendo os bilhetinhos e os colocando no lugar costumeiro. Quase
trinta dias de infrutíferos ensaios. Finalmente o abelhudo alcançou o cocuruto
do pódio. Deu graças. Chorou de alegria e contentamento. A ponto de, quase a
botar as mãos nos bilhetes, degringolar, se rebentando no chão de terra batida.
Ganhou uma série considerada de arranhões, todavia, não entregou os pontos. O
pior passara.
Nesse tempo todo de subidas e escorregadelas, patinadas e
saracoteios, Dirceu pegara o macete, de como se elevar, e, claro, se sustentar
sem propender a se estabacar. Se por azar rolasse desajeitado, poderia
acrescentar a seu infortúnio a presença de uma sisuda cadeira de rodas. Nem
pensar. Ufa! Poria fim a sua alcovitação dia seguinte. Deu certo. Esperou
pacientemente o Anastácio colocar mais um papelzinho. Pelas suas contas, desde
que passara a observá-lo, beiraria o mesmo número de meses desde que optara a
ser um ousado beleguim.
Na oportunidade seguinte, por sinal um sábado ensolarado,
seu sucesso se fez pleno. Subiu, subiu, havia aprendido a controlar a
respiração, as posições certas para não perder terreno. Eis que a sua
neurastenia quase às raias de uma birra insolente misturada com angústia e
exasperação, lhe agraciou com o mito acautelado. Sem perder um segundo, Dirceu
alcançou o prego que sustinha os bilhetinhos. Arrancou os que lhe foram
possíveis. Entabulou o processo de descida, lenta e gradativa, as minúsculas
cédulas presas entre os dedos. Em terra firme, tratou de correr para seu
quadrado. No silêncio do emparedamento, longe de olhares abelhudos e metediços,
passou a ler as mensagens. Três palavras numa letra desgraçadamente infeliz se
juntaram ao seu espanto quase abissal. Desatou a chorar como criança que perdeu
um brinquedo de estimação. Em todas as tirinhas de papel a frase lacônica e
concisa, como um mantra sem eira nem beira. “Fim de pau”. Não contente em
chorar, arrancou alguns tufos de cabelos. Bateu com a cabeça na parede. “Fim de
pau!”. Estólido ignaro e bronco esse Anastácio dos infernos. O que
significavam, ou o que sinalizavam essas três palavras, afinal?!”.
Aferrado nesse caótico sarapantado, Dirceu entrou em um
estado de agonia como há tempos não lhe abatia sobre os costados. Garrou a gritar. Em meio a esses berros
espalhafatosos, os enfermeiros pularam de suas cadeiras e chegaram arrombando a
porta de seu cubículo (que ele havia algaraviado por dentro) e o levaram direto
para a enfermaria. Aquietou-se com um
sossega leão que lhe aplicaram. Até agora ninguém do hospício soube dizer com
precisão o que de fato levou o doidivanas do Dirceu a tomar aquela decisão de
se autoflagelar. “Fim de pau”. “Fim de pau”. E de texto também.
Título e Texto:
Aparecido Raimundo de Souza, do sítio “Shangri-la”, um lugar perdido no
meio do nada. 13-2-2018
Colunas anteriores:
Registramos, com sentido pesar, o passamento da senhora mãe do escritor Aparecido Raimundo de Souza, ocorrido ontem, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018.
ResponderExcluirNossas elevadas condolências a Aparecido e familiares.