Alberto Gonçalves
De repente (força de expressão), espécimes que tropeçam na língua
e na decência têm Portugal inteirinho nas mãos. E não se prevê que o larguem.
Pior: não se imagina quem queira obrigá-los a largar.
Assim, sim. Inspirado pelo fantasma de
Sá Carneiro, que dispõe de costas largas, o dr. Rio assegura o regresso da “socialdemocracia”
e esconjura o monstro “liberal”. O dr. Fernando Negrão promete dialogar com o
governo a bem do “interesse nacional”. O dr. César dos Açores abençoa “a
mudança saudável que aconteceu no PSD”. O PSD cozinha pactos com o PS para
subtrair dinheiro à “Europa” e engrandecer a pátria. O recente debate quinzenal
foi mais doce que os sonhos da Miss Universo. O Bloco jura não sentir ciúmes. O
dr. Costa saúda o retomar da “normalidade”. E o prof. Marcelo exige
“convergências” como se estas não fossem a natureza de um sistema que enfim
entrou em roda livre.
Depois do Tempo Novo, eis o advento do
Tempo Novíssimo. Os sinais estão aí, tão sutis quanto os de um atropelamento
por retroescavadeira. Lembram-se de quando os catastrofistas alertavam para uma
imitação local do folclore venezuelano? Ridículo. Embora em repouso prisional,
na Venezuela há oposição. Por cá, desde a despedida de Pedro Passos Coelho, há
isto: um partido de poder que abdica do mesmo para hipotética satisfação das
clientelas e satisfação garantida de socialistas, leninistas,
terceiro-mundistas, populistas e oportunistas em geral. Em prol da
“estabilidade”, da moral e dos costumes, o PSD tornou-se uma agremiação
benemérita, ou o Convento dos Capuchos. E dos Pachecos. E das Manelas. E de
toda a tralha que, por necessidade ou rancor, passou anos a exigir mansidão e a
tentar varrer o último obstáculo aos seus apetites.
Hoje, a tralha celebra com razão,
ainda que nos intervalos dos festejos se dedique a farejar resquícios do
inimigo. Uns, por exemplo, empenham-se na delação de fiéis de Pedro Passos
Coelho no parlamento. Outros, outro exemplo, contestam a contratação do ex-primeiro-ministro
por duas ou três faculdades (e louvam as cátedras do dr. Francisco Anacleto
Louçã – cuja ponderação intelectual rivaliza com a de Charles Manson – na
universidade, na TV, na rádio, nos jornais e no Conselho de Estado). E não
esqueçamos os que apontam o dedo à “extrema-direita”, “conservadora” e
“neoliberal”, que se acotovela no “Observador”, de facto uma crescente excepção
ao caldo de propaganda e entretenimento em que caiu a generalidade dos “media”.
Nos viciados na denúncia certos hábitos nunca morrem.
O que morreu, ou pelo menos ficou com
diagnóstico reservado, foram as semelhanças, já de si ténues, entre o regime e
uma democracia civilizada. De repente (força de expressão), espécimes que
tropeçam na língua e na decência têm Portugal inteirinho nas mãos. E não se
prevê que o larguem. Pior: não se imagina quem queira obrigá-los a largar. Dado
que o CDS é uma coisa de “direita” liderada por uma devota da regulação, a
verdade é que uns 30% dos eleitores se encontram sem representação. Nem
esperança. Apesar de tudo, a teimosia de Pedro Passos Coelho dava a impressão,
discutivelmente correta, de que havia alternativa à resignação perante os
oligarcas. Agora, em relação de simbiose com gangues de chalupas e de
parasitismo com contribuintes anestesiados, a oligarquia espreguiça-se à larga.
Contas por baixo, um milhão de votantes em 2015 não saberá no que votar em
2019, se, entretanto, as eleições não tiverem sido abolidas para evitar
transtornos divisionistas. Tardou nove décadas, e, colada pelo descaramento, a
União Nacional lá se consagrou.
É pena? Depende. Por mim, sou
suficientemente avesso a coletivismos, ou meramente egoísta, para encarar com
desprendimento teórico os desvarios da nação. Se o país em peso resolve
jovialmente lançar-se rumo ao penhasco ou a uma alucinação latino-americana, o
país pode fazê-lo com estrondo. O problema é a prática, na qual se torna
difícil conseguir um camarote para acompanhar ileso o espetáculo. Ao contrário
dos oligarcas e respectivos protegidos, os cidadãos comuns, classe a que
indubitavelmente pertenço, não escapam sem abalos a desastres desta dimensão.
Um dia pagaremos o gozo dos que celebram os “acordos”, os “consensos” e,
regresso – salvo seja – ao prof. Marcelo, as “convergências”, que aliás já
começamos a pagar todos os dias. Quando a experiência acabar, ou quando
acabarmos nós, seremos mais pobres, mais isolados, mais dependentes, mais
ridículos. E menos livres. Mas muito unidos, no fundo o que importa. No fundo.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 3-3-2018
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