Aparecido Raimundo de Souza
“Há de chegar um tempo em que o
amanhecer será, realmente, para mudar, vertendo alívio em voos de pássaros ao
sol”.
Vilmar
José Matter
OS DOZE APÓSTOLOS DE JESUS CRISTO chegaram a São Paulo um
pouco antes da meia noite de uma sexta-feira, montados, três a três, nos quatro
cavalos do Apocalipse. Deixaram as montarias na cobertura da Ponte da Casa
Verde ladeadas pela Marginal vazia de trânsito intenso àquela hora, e o famoso
Rio Tietê e seguiram, logo depois de uma rápida refeição, a pé. Cada um para um
determinado ponto.
Combinaram que à mesma hora, uma semana depois, se
reencontrariam naquele mesmo lugar, e, então, seguiriam viagem com destino a
outro Estado. Pedro, logo que deixou o grupo, se viu às voltas com dois menores
infratores recém-fugidos de um Centro de Detenção Provisório. Depois de lhe
surrupiarem as coisas poucas que levava nos bolsos da calça, a dupla tomou
posse de um carro e fugiu em alta velocidade.
Três horas depois dos moleques infratores, uma galera de
desocupados, lá pelas bandas de Santo André o espancou e o matou numa favela da
periferia. Não contentes, os infelizes bateram nele e o crucificaram numa cruz
tosca de madeira vagabunda. A polícia encontrou Pedro, quase ao meio dia de um
sábado maravilhoso e ensolarado, enterrado de cabeça para baixo nas cercanias
do Rio Pinheiros, em Cidade Jardim.
Tiago, filho de Zebedeu, o segundo a se ver em apuros. Às
primeiras horas de um final de domingo, uma radiopatrulha que fazia a ronda
pela região da Barra Funda topou com a sua cabeça perto da estação do metrô. Do
corpo, porém, nem sinal.
João, irmão de Tiago, veio a óbito vítima de uma bala
perdida, em Osasco, quando caminhava pela Anhanguera, em direção ao SBT.
André, irmão de Pedro, entrou num subúrbio com destino à
Itapeví. Confundido com um policial à paisana, quatro assaltantes que entraram
no trem, em Presidente Altino, o espancaram e, para não deixar pistas, o
crivaram de balas. Testemunhas ouvidas relataram que André partiu desta para
melhor, admoestando seus algozes.
Tiago, da linhagem de Alfeu, se viu abatido a golpes de faca
numa emboscada perto do antigo presídio do Carandiru.
Mateus, o ex-coletor de impostos, para sobreviver, se vestiu
de mendigo e como tal, resolveu bater de porta em porta pedindo restos de
comida nas mansões dos ricos, no famoso bairro do Morumbi. Meio assemelhado com
um maníaco que atacava mocinhas, acabou numa das celas da polícia civil.
Bartolomeu teve fim trágico. Ao passar defronte a um banco
vinte e quatro horas, meliantes o tomaram por um empresário famoso. Por essa
razão, sequestraram o desgraçado e o prenderam no bagageiro de uma BMW,
acondicionado dentro de um enorme saco plástico. Bartolomeu e o automóvel
acabaram no fundo do Rio Mandaquí.
Simão, o Zelote, se enveredou por uma localidade conhecida
como Cidade Dutra, e o fez por engano. Ao dar meia volta uma gangue lhe pôs cabo
à vida. Entretanto, um jornal sensacionalista de grande circulação em São
Paulo, noticiou que um homem conhecido por Simão morreu envenenado à porta de
um hospital do SUS em Campo Limpo, Região Sul paulista por falta de socorro
médico.
Filipe por seu turno morreu fuzilado ao empreender uma fuga
em desabalada carreira. Caiu numa roda de fogo, onde policiais e bandidos
trocavam tiros em plena Avenida Paulista.
Judas Iscariotes, irmão de Tiago, se viu detido por uma
guarnição da brigada militar por estar vendendo, na Praça da Sé, pingentes com
a imagem de Jesus, dizendo que tais penduricalhos operavam milagres divinos. Um
louco, que dividia a cela com ele, na segunda noite, o matou a golpes de
estilete.
Tadeu se envolveu com uma multidão de pessoas enlouquecidas
numa rua movimentada de São Bernardo, região do grande ABC. O povo gritava que
ele era o criminoso que agia naquelas redondezas roubando e estuprando
mulheres. Por conta, atearam fogo em suas vestes. Em consequência dessas
queimaduras morreu antes que os homens da lei e uma guarnição dos bombeiros
pudessem prestar algum tipo de ajuda.
Tomé foi o único que saiu, caminhou pela Freguesia do Ó,
Brasilândia, Itaberaba e outros bairros próximos e voltou ileso ao local onde
se daria a reunião previamente estabelecida. Precisava, como sempre, ver seus
amigos, um a um, para crer que estavam bem. Extremamente incrédulo, gastou um
tempo enorme olhando de um lado para outro, sem muita esperança e convicção de
que um dos onze efetivamente voltasse.
O fato é que nessa agonia esperou horas a fio, durante
longos dias e noites. Começava a se aperrear, mas necessitava ver. Dos onze
companheiros, nem sombra. Nenhuma notícia. Qualquer sinal de que apareceriam,
de repente, sãos e salvos.
Nos dias que se seguiram à sua chegada ao local
pré-estabelecido, o mesmo quadro se repetiu como nos anteriores. Mergulhado
nessa incerteza crucial, vários dias e horas intermináveis realmente correram,
ou melhor, voaram, sem mudanças fundamentais. Nada, absolutamente nada aconteceu
de novo. Passou uma semana, duas, três...
Debaixo daquele viaduto da Casa Verde, margeado pelo Rio
Tietê, Tomé, sentado numa caixa de refrigerante podre, olhava desolado para os
cavalos, perfilados, um ao lado do outro, impassíveis, à espera de seus
ocupantes. Porém, os amigos não deram sinais de existência. Teriam se perdido
em meio à cidade imensa? Estariam feridos, ou em apuros, ou, quem sabe mortos?
Tomé não acreditava nessa hipótese, aliás, não se agarrava em suposição
nenhuma. Como sempre, para se cumprir a palavra: ver, ver, olhar, PARA, enfim,
CRER.
Nesse interregno, sequer havia formado uma conjectura na
qual se afeiçoar. Bastava, contudo, ver para crer. Essa maldição o perseguia.
Quem sabe, vendo e crendo, crendo e, sobretudo vendo, pressuporia alguma coisa
realmente concreta. Para Tomé crer em alguma coisa, carecia literalmente de
enxergar, se certificar no preto e branco. Ele, neófito, por natureza, perdido
em seus próprios pensamentos e tragédias, realmente, nada viu.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Campinas, interior de São Paulo. 20-3-2018
Colunas anteriores:
Aparecido, achei genial sua alusão aos personagens bíblicos vivendo nos dias atuais. Seria mais ou menos desse modelo. Seria engraçado não fosse tão trágico.
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