A coisa tornou-se óbvia em 2003 durante o
processo Casa Pia. Depois veio José Sócrates e a coisa agigantou-se. A coisa
primeiro estranha-se. Depois entranha-se.
A prisão de Lula tornou-se um
imperativo. Por outras palavras, seja qual for a posição que se tenha sobre os
factos que determinaram a prisão do seu ex-presidente não era de modo algum
possível ao Brasil aceitar que a ordem de prisão não fosse cumprida. Já não
havia retorno: ou Lula era preso ou o Brasil passava de país a anedota.
Não era possível manter por
muito mais tempo o filme da prisão de Lula que haveria de ter lugar no sábado a
seguir à missa por alma da mulher (apesar da voz embargada do viúvo creio que
este se esqueceu completamente de dona Marisa durante a por assim dizer
celebração religiosa em sua memória), em seguida no domingo, quando terminasse
o futebol, por fim dentro em poucos minutos mas “o povo não deixa”…
Mas para lá deste óbvio
ululante temos na prisão de Lula outras questões que dizem respeito a todos
nós. Uma delas prende-se com a coisa. O que é a coisa? A coisa é aquele
excipiente que leva a que num determinado momento tudo se inverta, passando os
réus a vítimas. Os crimes hediondos a factos irrelevantes, quando não a
cabalas.
A coisa primeiro estranha-se.
Depois entranha-se. A coisa acontece quando a pertença política dos
investigados se sobrepõe ao julgamento sobre a natureza dos seus atos. Hoje
todos se chocam com o pacto de silêncio que no passado envolveu os crimes
sexuais praticados pelo clero católico. Ninguém via nada? Porque se calavam
todos? Porque os criminosos eram padres. Curiosamente essa lição do passado não
impede a presente berraria que acompanha os arguidos que politicamente vêm do
campo da esquerda e do progressismo. Os argumentários para justificar o
injustificável são vários, passando inevitavelmente pelas acusações de
perseguição, pelo dogma da amizade pelos pobres (entendendo-se geralmente a
dita amizade por tornar os pobres subsidiodependentes) ou pelo “espírito
avançado” do protagonista.
Em Portugal a coisa começou em
2003. Ou melhor dizendo há quinze anos a coisa tornou-se óbvia: em 2003,
Portugal confrontava-se com o escândalo Casa Pia. A revelação sobre os abusos
sexuais sofridos por dezenas de crianças internadas naquela instituição causou
inicialmente um enorme sobressalto. Do primeiro detido, o motorista Carlos
Silvino, rapidamente se passou para outros nomes, alguns com enorme
notoriedade, como era o caso do apresentador Carlos Cruz. Até que a discussão
deixou de incidir sobre o que acontecera às crianças e passou a tratar da
investigação em si mesma: se podiam ou não fazer-se escutas; se a ordem de
prisão podia ou não ser dada naqueles termos…
De repente éramos todos
especialistas em mandatos de prisão, técnicas de inquérito criminal e poderes
do ministério público. No final de 2003, o Procurador-geral da República, José
Souto Moura, já vivia dias de inferno. O que até então se definia como
independência da justiça começou a ser depreciativamente tratado como juízes em
roda livre. Quanto aos jornalistas, os dias de elogio ao seu trabalho já tinham
terminado. Começavam as acusações de perseguição e sanha. O que aconteceu,
entretanto? Porque mudou tudo?
Aconteceu que em maio de 2003
foi preso Paulo Pedroso, então deputado pelo PS. O escândalo Casa Pia tocava o
PS. Souto Moura tornou-se o “gato constipado”. A justiça independente passou de
conquista da democracia a cancro do regime e era motivo de escândalo a imagem
do juiz Rui Teixeira dentro de um elevador, na Assembleia da República, a
caminho do encontro com Mota Amaral, presidente do parlamento, para lhe dar
conta da sua decisão de ouvir Paulo Pedroso.
Onze anos depois, a 21 de novembro
de 2014, novo embate entre aquele núcleo do regime que centra o seu discurso na
reivindicação da igualdade enquanto programa político, mas que concebe a lei
como algo que só se aplica aos outros. A 21 de Novembro de 2014 foi preso José
Sócrates. Durante anos, José Sócrates protagonizou os mais inverossímeis casos.
Acumulou as mais bizarras situações. Mas tudo eram cabalas e urdiduras. No fim,
nesse novembro de 2014, acabámos a discutir já não a utilização dos elevadores
pelos juízes, mas sim o espantoso crime da detenção na manga do avião! Saltavam
especialistas em mangas de avião de todos cantos. Como era possível deter
alguém na manga do avião??? – perguntavam em novembro de 2014 os indignados com
a atuação da justiça, mas a quem a atuação do antigo primeiro-ministro não
causara em momento algum a menor dúvida, quanto mais qualquer indignação.
A coisa voltou em força nesse novembro
de 2014 e aí está, em 2018, não nomeada, mas bem instalada no meio de nós.
Aliás pela capacidade de a enfrentarmos passará essa questão central do regime:
somos uma democracia ou “a situação”, com um partido natural de poder – o PS –
e uma oposição cujo papel é provar a superioridade de quem governa?
O folhetim da detenção Lula
talvez tenha a vantagem de tornar evidente aquilo que acontece a um povo e a um
país quando determina que cabe aos tribunais decidir do bem e do mal, do certo
e do errado, do moral e do imoral. A partir do momento em que achamos que não
vale a pena insistir na defesa dos valores morais e deixamos que os tribunais
decidam se se está ou não perante um crime estamos a abdicar do nosso direito
de escolher, pois não se contesta um juiz como se contesta um político.
A judicialização da política
só acontece (e de facto ela está a acontecer) porque por cumplicidade,
cobardia, desleixo ou desistência entregámos aos tribunais o que devia ser o
nosso papel: dizer não aos políticos. A partir do momento em que deixamos de
dizer não aos políticos transferimos poder para os tribunais. E aos tribunais
não se diz não nem sim. Cumpre-se.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 8-4-2018
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