Helena Garrido
Tal como os que estão habituados a
sentarem-se à mesa do Orçamento, há na Cultura uma espécie de direito divino
sobre o dinheiro dos contribuintes. Agora perceberam que ainda estamos em
austeridade.
António Costa e Mário Centeno
não conseguem estar parabéns por assinarem o mais baixo défice da democracia e,
ao mesmo tempo, convencerem durante “todo o tempo, toda a gente” que a página
da austeridade foi virada.
Esta semana foi a vez de os
agentes da Cultura perceberem, finalmente, que as promessas que lhes fizerem,
algures em 2015 ou 2016, e que pacientemente aguardaram que fossem cumpridas
até 2018, afinal não passam disso mesmo: de promessas. A irritação, que só se
sente perante expectativas traídas, foi de tal ordem que alguns protagonistas
nem escolheram as palavras. E foi assim que alguns mostraram-nos que se
consideram detentores de uma espécie de direito divino a serem financeiramente
apoiados.
O Governo está, em
contrapartida, a receber a reação de fazer o oposto do que diz, como sempre
aqui se foi alertando. A política que praticou está longe de ser a que anunciou
– como o demonstram os resultados orçamentais. Teve capacidade política para
convencer que havia alternativa à falta de dinheiro, exposta na dimensão da
nossa dívida – porque é ela que exige esta austeridade como alternativa a
termos de pedir outra vez ajuda externa. Não tem obviamente o poder de fazer
dinheiro e satisfazer todas as clientelas durante muito tempo.
Assim como alguns protagonistas
da cultura se revelaram como detentores de um direito divino, o Governo
mostrou, com este caso, que o “rei vai nu”, já com pouco dinheiro para
disfarçar a falta de dinheiro.
Os resultados das candidaturas do Programa de Apoio Sustentado às Artes
2018-21, que concretizam o novo modelo de financiamento da cultura, podem ser
discutíveis, especialmente pelos seus efeitos nas estruturas dedicadas ao
teatro. É difícil compreender como é que Coimbra ou Évora ficaram excluídas de
apoios financeiros. É compreensível o argumento do presidente da Câmara
Municipal do Porto Rui Moreira sobre a irracionalidade de integrar o Porto na
região Norte e Lisboa estar autonomizada como Área Metropolitana de Lisboa.
Pode sempre dizer-se que as autarquias desempenham também um papel nesse apoio,
mas esse seria um argumento também válido para Lisboa.
Em contrapartida, são
totalmente incompreensíveis declarações que têm subjacente o direito absoluto,
quase divino, a aceder aos apoios do Estado. Dois exemplos. O diretor do Teatro
Experimental de Cascais Carlos Avilez disse ser “impensável” a sua companhia
não ter apoio. E acrescentou: “Então vamos ter uma sala nova e acabam conosco?”
A atriz Maria João Luis insurge-se contra as exigências dos formulários que têm
de ser preenchidos para aceder ao dinheiro dizendo: “Como é que posso dizer
quais são os atores que vão entrar, o porquê daqueles atores, se eu ainda não
sei o que vou fazer?”
O Teatro Experimental de
Cascais deu então como adquirido – como aliás continua a dar, e se calhar o
tempo vai dar-lhe razão –, que seria apoiado financeiramente pelo Estado. E uma
das razões é “cimento”, a sala nova. No universo financeiro, e mantidas as
devidas distâncias, uma atitude como esta recorda-nos a certeza defraudada de
Ricardo Salgado de que nenhum governo de Portugal se atreveria a dizer-lhe que
a CGD não o financiaria. Com Maria João Luis assistimos ao melhor exemplo do
direito ao dinheiro “porque sim”, considerando a atriz que não tem sequer de
saber o que vai fazer.
Neste caso dos apoios, fomos
expostos ao que de pior tem a cultura dependente dos subsídios: todos os
direitos, nenhuns deveres. O que está subjacente é que o Estado tem a obrigação
de apoiar as atividades culturais e os governos até se deviam sentir orgulhosos
de o fazerem. Ninguém repara ou quer reparar, nem os agentes da cultura, nem os
governantes, que estão a viver num circuito fechado de almoços grátis, pagos
por aqueles que se mantêm fora desse universo, e sem contribuírem sequer para
melhorarem o nível cultural do país.
É preciso não compreender mal
o que aqui se está a dizer. Claro que o Estado tem de apoiar a Cultura – existe
aqui aquilo que os economistas designam como “externalidades” positivas. Mas
não a pode apoiar sem garantir que essas externalidades existem mesmo, que se
atingem objetivos. Caso contrário, aquilo que está a garantir são apenas rendas
que, neste caso como noutros, vão parar ao bolso de quem tiver o poder de
gritar mais alto.
O que é chocante, no debate a
que temos assistido e de parte a parte, é a total ausência de conversa sobre os
objetivos que se pretendiam atingir com os projetos que não foram apoiados. O
debate é feito em termos que se assemelham a discussões entre o filho que quer
dinheiro e o pai que não dá.
Enquanto isto acontece, os
portugueses em geral não vão ao teatro nem a outros espetáculos e ninguém se
importa com isso. A escola pública deixou de ter, há muito tempo, qualquer
coisa que se possa designar como educação para as artes. Quem quiser tem de ir
para escolas privadas, o que significa que só as famílias com mais dinheiro
podem pagar para os filhos aprenderem música, teatro, cinema e artes em geral.
Com essa política, de défice
de educação para as artes, o número de consumidores continuará a ser reduzido.
E assim se manterá este círculo de dependência do Estado, em todas áreas que
não sejam as dos grandes festivais. Não se aposta em políticas de aumento da
procura dos espetáculos que se subsidiam, quando é óbvio que só com mais
consumidores poderemos sair deste excesso de dependência. (É interessante
vermos que se privilegia a oferta também num Governo que diz dar um enorme peso
ao crescimento da economia induzido pela procura, mesmo quando estamos perante
um caso em que atuar sobre a procura poderia gerar mais resultados do que
apenas a subsidiação da oferta.)
Se olharmos para a formação
superior no domínio das artes, o panorama não é melhor. As últimas notícias
diziam-nos que a Escola Superior de Dança em Lisboa está a cair e
a Escola de Música do Conservatório Nacional no Convento
dos Caetanos em Lisboa, espera-se, vai finalmente entrar em obras em 2018. A
Parque Escolar andou a recuperar escolas como se fossem palácios de luxo, e a
seguir ficou sem dinheiro, como o país. E os estudantes de música ou de dança
faziam pouco barulho.
Um ex-governante conta que lhe
disseram que podia fazer obviamente o que quisesse na Cultura. Mas devia sempre
lembrar-se que as pedras não se manifestam, não reclamam, não choram. Conselho
implícito: deixe lá o património cultural que ele não se queixa.
E é neste regime que temos
vivido. O dinheiro distribui-se para calar as vozes que chegam aos jornais, às
televisões e às rádios. O governo de António Costa tem sido especialista nessa
matéria: segmenta muito bem a população entre os que têm voz que se ouve – para
onde vai o dinheiro – e os que bem podem gritar que ninguém os vai ouvir – onde
se pode poupar. E aqui, como já percebemos pela promessa de mais verbas, faz o
mesmo. Vai usar exatamente a mesma táctica para acalmar os revoltados como o
novo modelo de financiamento: paga. Assim se vira a página da austeridade,
pagando a quem faz barulho.
Os defensores oficiais da
Cultura agradecem. Continuam a fazer o que lhes apetece, a exercer o seu
direito divino ao dinheiro dos contribuintes, indiferentes à falta de público
porque não falta dinheiro para a educação para as artes. E assim, como outros
portugueses com vozes audíveis, ficam convencidos que a página da austeridade
foi virada por António Costa.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
5-4-2018
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