sexta-feira, 6 de abril de 2018

A cultura da Cultura e do Governo

Helena Garrido

Tal como os que estão habituados a sentarem-se à mesa do Orçamento, há na Cultura uma espécie de direito divino sobre o dinheiro dos contribuintes. Agora perceberam que ainda estamos em austeridade.

António Costa e Mário Centeno não conseguem estar parabéns por assinarem o mais baixo défice da democracia e, ao mesmo tempo, convencerem durante “todo o tempo, toda a gente” que a página da austeridade foi virada.

Esta semana foi a vez de os agentes da Cultura perceberem, finalmente, que as promessas que lhes fizerem, algures em 2015 ou 2016, e que pacientemente aguardaram que fossem cumpridas até 2018, afinal não passam disso mesmo: de promessas. A irritação, que só se sente perante expectativas traídas, foi de tal ordem que alguns protagonistas nem escolheram as palavras. E foi assim que alguns mostraram-nos que se consideram detentores de uma espécie de direito divino a serem financeiramente apoiados.

O Governo está, em contrapartida, a receber a reação de fazer o oposto do que diz, como sempre aqui se foi alertando. A política que praticou está longe de ser a que anunciou – como o demonstram os resultados orçamentais. Teve capacidade política para convencer que havia alternativa à falta de dinheiro, exposta na dimensão da nossa dívida – porque é ela que exige esta austeridade como alternativa a termos de pedir outra vez ajuda externa. Não tem obviamente o poder de fazer dinheiro e satisfazer todas as clientelas durante muito tempo.

Assim como alguns protagonistas da cultura se revelaram como detentores de um direito divino, o Governo mostrou, com este caso, que o “rei vai nu”, já com pouco dinheiro para disfarçar a falta de dinheiro.

Os resultados das candidaturas do Programa de Apoio Sustentado às Artes 2018-21, que concretizam o novo modelo de financiamento da cultura, podem ser discutíveis, especialmente pelos seus efeitos nas estruturas dedicadas ao teatro. É difícil compreender como é que Coimbra ou Évora ficaram excluídas de apoios financeiros. É compreensível o argumento do presidente da Câmara Municipal do Porto Rui Moreira sobre a irracionalidade de integrar o Porto na região Norte e Lisboa estar autonomizada como Área Metropolitana de Lisboa. Pode sempre dizer-se que as autarquias desempenham também um papel nesse apoio, mas esse seria um argumento também válido para Lisboa.

Em contrapartida, são totalmente incompreensíveis declarações que têm subjacente o direito absoluto, quase divino, a aceder aos apoios do Estado. Dois exemplos. O diretor do Teatro Experimental de Cascais Carlos Avilez disse ser “impensável” a sua companhia não ter apoio. E acrescentou: “Então vamos ter uma sala nova e acabam conosco?” A atriz Maria João Luis insurge-se contra as exigências dos formulários que têm de ser preenchidos para aceder ao dinheiro dizendo: “Como é que posso dizer quais são os atores que vão entrar, o porquê daqueles atores, se eu ainda não sei o que vou fazer?”

O Teatro Experimental de Cascais deu então como adquirido – como aliás continua a dar, e se calhar o tempo vai dar-lhe razão –, que seria apoiado financeiramente pelo Estado. E uma das razões é “cimento”, a sala nova. No universo financeiro, e mantidas as devidas distâncias, uma atitude como esta recorda-nos a certeza defraudada de Ricardo Salgado de que nenhum governo de Portugal se atreveria a dizer-lhe que a CGD não o financiaria. Com Maria João Luis assistimos ao melhor exemplo do direito ao dinheiro “porque sim”, considerando a atriz que não tem sequer de saber o que vai fazer.

Neste caso dos apoios, fomos expostos ao que de pior tem a cultura dependente dos subsídios: todos os direitos, nenhuns deveres. O que está subjacente é que o Estado tem a obrigação de apoiar as atividades culturais e os governos até se deviam sentir orgulhosos de o fazerem. Ninguém repara ou quer reparar, nem os agentes da cultura, nem os governantes, que estão a viver num circuito fechado de almoços grátis, pagos por aqueles que se mantêm fora desse universo, e sem contribuírem sequer para melhorarem o nível cultural do país.

É preciso não compreender mal o que aqui se está a dizer. Claro que o Estado tem de apoiar a Cultura – existe aqui aquilo que os economistas designam como “externalidades” positivas. Mas não a pode apoiar sem garantir que essas externalidades existem mesmo, que se atingem objetivos. Caso contrário, aquilo que está a garantir são apenas rendas que, neste caso como noutros, vão parar ao bolso de quem tiver o poder de gritar mais alto.

O que é chocante, no debate a que temos assistido e de parte a parte, é a total ausência de conversa sobre os objetivos que se pretendiam atingir com os projetos que não foram apoiados. O debate é feito em termos que se assemelham a discussões entre o filho que quer dinheiro e o pai que não dá.

Enquanto isto acontece, os portugueses em geral não vão ao teatro nem a outros espetáculos e ninguém se importa com isso. A escola pública deixou de ter, há muito tempo, qualquer coisa que se possa designar como educação para as artes. Quem quiser tem de ir para escolas privadas, o que significa que só as famílias com mais dinheiro podem pagar para os filhos aprenderem música, teatro, cinema e artes em geral.

Com essa política, de défice de educação para as artes, o número de consumidores continuará a ser reduzido. E assim se manterá este círculo de dependência do Estado, em todas áreas que não sejam as dos grandes festivais. Não se aposta em políticas de aumento da procura dos espetáculos que se subsidiam, quando é óbvio que só com mais consumidores poderemos sair deste excesso de dependência. (É interessante vermos que se privilegia a oferta também num Governo que diz dar um enorme peso ao crescimento da economia induzido pela procura, mesmo quando estamos perante um caso em que atuar sobre a procura poderia gerar mais resultados do que apenas a subsidiação da oferta.)

Se olharmos para a formação superior no domínio das artes, o panorama não é melhor. As últimas notícias diziam-nos que a Escola Superior de Dança em Lisboa está a cair e a Escola de Música do Conservatório Nacional no Convento dos Caetanos em Lisboa, espera-se, vai finalmente entrar em obras em 2018. A Parque Escolar andou a recuperar escolas como se fossem palácios de luxo, e a seguir ficou sem dinheiro, como o país. E os estudantes de música ou de dança faziam pouco barulho.

Um ex-governante conta que lhe disseram que podia fazer obviamente o que quisesse na Cultura. Mas devia sempre lembrar-se que as pedras não se manifestam, não reclamam, não choram. Conselho implícito: deixe lá o património cultural que ele não se queixa.

E é neste regime que temos vivido. O dinheiro distribui-se para calar as vozes que chegam aos jornais, às televisões e às rádios. O governo de António Costa tem sido especialista nessa matéria: segmenta muito bem a população entre os que têm voz que se ouve – para onde vai o dinheiro – e os que bem podem gritar que ninguém os vai ouvir – onde se pode poupar. E aqui, como já percebemos pela promessa de mais verbas, faz o mesmo. Vai usar exatamente a mesma táctica para acalmar os revoltados como o novo modelo de financiamento: paga. Assim se vira a página da austeridade, pagando a quem faz barulho.

Os defensores oficiais da Cultura agradecem. Continuam a fazer o que lhes apetece, a exercer o seu direito divino ao dinheiro dos contribuintes, indiferentes à falta de público porque não falta dinheiro para a educação para as artes. E assim, como outros portugueses com vozes audíveis, ficam convencidos que a página da austeridade foi virada por António Costa.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador, 5-4-2018

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