Alberto Gonçalves
Bernardo Lapa celebrou o governo de
esquerda, que assumiria a responsabilidade que lhe cabe na Cultura,
distribuindo os rendimentos da população bronca pelos agentes” susceptíveis de
a iluminar.
É tempo de contar a história
de Bernardo Lapa, tão verídica quanto o país. Ainda muito novo, Bernardo Lapa
desconfiou que via o mundo de modo diferente. Três oftalmologistas garantiram
tratar-se de astigmatismo, mas um tio ligado à mediação de seguros e às artes
(participou em três “coletivas” de pintura e visitou outras dezesseis)
falou-lhe no “olhar artístico” e desde então Bernardo Lapa não mais deixou de
procurar a própria “voz”. Sempre era melhor do que procurar emprego.
No final da adolescência, a
par do curso de Antropologia, Bernardo Lapa já havia percorrido inúmeras formas
de expressão, da banda desenhada à fotografia, do candomblé à olaria, da
acupuntura ao batuque. E causou brado, junto de dois primos, a sua fugaz
aparição na curta-metragem “Mariana, ou da Natureza das Coisas”. Aos 21 anos,
julgou ter descoberto o seu habitat no universo literário, que depressa
abandonou ao perceber que, além de conceber o romance “A Côdea” (o relato de um
flautista de rua que convence um gestor de ativos a tornar-se flautista de
rua), teria também de escrevê-lo. O rigor burguês e acomodado da gramática não
o seduzia.
Aos 24 anos, após sucessivos
retiros num mosteiro budista e no sofá-cama da namorada, Bernardo Lapa optou
por romper com quaisquer abordagens tradicionalistas e dedicou-se a promover
instalações. Embora nunca tenha instalado um ar-condicionado ou uma torneira de
passagem, ficou relativamente célebre a ocasião em que se instalou num
restaurante do Chiado, engoliu um arroz de tamboril com vinho branco e, no
momento de pagar a conta, denunciou aos berros a perseguição aos artistas.
Nessa época, repetiram-se os berreiros e as greves de fome, nenhuma superior a
quatro horas.
A caminho dos 30 e a meio
caminho entre a casa dos pais e as vigílias por causas sortidas, Bernardo Lapa
viu um mendigo sem pernas e, ao contorná-lo a sete metros, teve uma epifania:
só havia uma arte capaz de retratar sem constrangimentos os abismos para que se
precipitam as almas, as brechas nos muros da incomunicabilidade, a complexidade
da existência, enfim. Nesse instante, permanentemente acometido de uma forte
consciência social, Bernardo Lapa comprou duas Sagres Mini e decidiu dedicar a
vida ao teatro de marionetes.
Um ano depois, a companhia Cabaça dos Mafarricos, que Bernardo Lapa fundara com um amigo e cinco bonecos, adquirira largo prestígio no eixo Príncipe Real-Campo de Ourique. Restava um problema: estava-se em 2012 e a austeridade “neoliberal” restringia selváticamente os subsídios à “Cultura”. Por motivos óbvios, a sra. Merkel e Pedro Passos Coelho não queriam expor o povo ao exato tipo de conhecimento patente nas obras da Cabaça dos Mafarricos. A peça inaugural, “Presos Por um Fio”, descrevia justamente (nos dois sentidos) a angústia de um licenciado em malabarismo – Tomás – que, por intervenção de um poder maligno e avesso à criatividade, se vê forçado a descer a trabalhos típicos da ralé. No derradeiro ato, desesperado pela falta de apoios, Tomás lança-se de um rés-do-chão e magoa-se um bocadinho. Na estreia, os seis espectadores aplaudiram de pé.
Nessa época, a contestação de
Bernardo Lapa não se limitou aos fantoches. Politizado, marchou quase
diariamente contra Israel, as touradas, a destituição daquela senhora
brasileira, o exílio do cançonetista Tordo, o consumo de bacalhau, o
aquecimento global, o arrefecimento global, o sr. Trump, a proibição das
drogas, o boicote ao Haiti, perdão, a Cuba (ele confundia-os), o Belenenses e,
claro, cantou a “Grândola” nas imediações de cada ministro da “direita”.
Afinal, Bernardo Lapa era um homem da “Cultura”.
E foi enquanto homem da
“Cultura” que Bernardo Lapa celebrou o advento de um governo de esquerda.
Finalmente, julgou, o Estado assumiria a responsabilidade que lhe cabe no
sector, distribuindo os rendimentos da população bronca pelos “agentes”
susceptíveis de a iluminar. No princípio, tudo correu bem. Através de uma ou
duas “cunhas”, a Cabaça dos Mafarricos obteve o financiamento de “Um Furúnculo
em setembro”, crítica implacável do turismo nas grandes cidades. Recentemente,
porém, Bernardo Lapa soube que a encenação seguinte, ainda com título, tema,
enredo e bonecos a definir, não conseguira a subvenção que ele e a humanidade
naturalmente esperavam. Num ápice, tirou a conclusão inevitável: o governo de
esquerda quer igualmente matar a cultura.
Nos últimos dias, Bernardo
Lapa tem-se desdobrado em protestos. Perante as câmaras televisivas, empunhando
um cartaz com o slogan “Só a ditadura não gosta da Cultura!!”, explicou às
massas que a arte não pode depender do gosto delas, mas apenas do dinheiro. O
vídeo, com 374 “visualizações” (e 41 “gostos”), tornou-se viral. Na
sexta-feira, Bernardo Lapa desfilou ao lado da dona Catarina do BE, ruidosa
adversária do Orçamento que aprova na AR. Começa a falar-se dele para um lugar
na Direção Geral das Artes ou até no ministério. Assim os deuses permitam, já
que a “Cultura” é um direito divino.
Notas de rodapé
1. O sr. Lula? Sinceramente, custa-me a crer que um sujeito com passado ilustre no comunismo, no sindicalismo e na apresentação de livros assinados por José Sócrates esteja envolvido num dos maiores esquemas de corrupção da história dos esquemas de corrupção. Se calhar, os tipos fizeram mal as contas e não desapareceu um tostão. Ou então é mesmo má vontade e há uma data de gente interessada em prejudicar a democracia, o progresso social, a paz, o pão, a habitação, etc. Entretanto, espera-se que resultem os esforços dos nossos “media” na beatificação do ex-metalúrgico: é que todos os dias entram por aí brasileiros assustados e convencidos de que esse santo é o demónio em forma de analfabeto. E o modo como o santo evitou entregar-se às autoridades para forçar baderna e sangue mostra que os brasileiros têm alguma razão. O sr. Lula não será o demónio, mas é dos maiores canalhas disponíveis no mercado.
2. Inúmeros
desmancha-prazeres pedem a demissão do presidente do Sporting. Nem a brincar. O
sr. Bruno de Carvalho é das raras fontes de diversão que o país possui. Deve
ser um dom natural, mas a verdade é que tudo o que o homem diz ou faz tem
graça. Ontem, foi a suspensão do “plantel” em peso. Amanhã, será a transladação
para os Jerónimos da sua vivíssima pessoa. Querer acabar com isto, e com o gozo
alheio, é coisa de malucos. E ainda juram que o maluco é ele.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
7-4-2018
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Um analfabeto de tal gabarito que faz o dr. Costa parecer um esteta da língua. Um sujeito nado e criado na vulgata "marxista" para utentes de infantários. Um ladrão sem escrúpulos. Um amigo de todos os ditadores das redondezas e de alguns remotos. Um salafrário capaz de usar a memória da mulher para espalhar demagogia. Um criminoso que estimula a violência sobre os próprios devotos para transformar a sua detenção num espectáculo. Um doido que se julga ungido. Como é que a nossa esquerda poderia não apoiar o sr. Lula?
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