sexta-feira, 13 de abril de 2018

Uma proposta radical para a cultura

Rui Ramos

Por que não responsabilizar pessoalmente o presidente da república ou o primeiro-ministro, enquanto mecenas por conta do Estado, pela despesa pública no subsídio às artes? Tudo seria mais transparente.

O processo revolucionário em curso contra Mário Centeno e o seu défice começou, a semana passada, pela “Cultura”. Houve manifestações a exigir 1% do Orçamento de Estado. As maiores fúrias, porém, não foram soltas por causa disso, mas pelos concursos das Artes: de repente, parecia que toda a gente tinha ficado de fora, e ninguém percebia porquê. Em suma, como nunca haverá todo o dinheiro do mundo, mesmo mais dinheiro nunca resolverá o problema de o distribuir.

Manfestação pela "cultura", Lisboa, foto: Nuno Ferreira Santos
Quanto à questão de quanto se deve gastar, bastará talvez dizer isto: de acordo com o Eurostat, entre os países que, em proporção da despesa, gastam menos com a “cultura” estão o Reino Unido, a Itália e a França. O país que mais gasta é a Hungria do muito deplorado Viktor Orban. Em suma, ninguém sabe bem qual a relação entre despesa pública e cultura, e entre a cultura e outras coisas, como o populismo. Mas vamos admitir que Portugal não é o Reino Unido, e precisamos do Orçamento ou de taxas para haver “cultura”, e que também não é a Hungria, e que, portanto, a nossa cultura subsidiada contribuirá sempre para o progresso da humanidade.

Como repartir?

Na cultura, o chamado património está geralmente salvaguardado pela tradição nacional, a mística da “conservação” ou o turismo. A “criação artística e literária”, para usar o português da administração fiscal, é que inspira discórdias.

Antigamente, as artes serviram a príncipes, bispos ou corporações urbanas para se entreterem ou celebrarem a sua grandeza. O gosto do mecenas era o critério. Se o rei gostava de Hieronymus Bosch, hoje o museu nacional que herdou as colecções reais tem uma grande seleção de Bosch, como o Prado graças a Filipe II. Se o rei adorava Wagner, a cidade tem hoje um teatro para as suas óperas, como Bayreuth graças a Luís II.

Ora bem, talvez estejam à espera que eu agora diga que tudo mudou. Mas nem tudo mudou. O maior argumento a favor da despesa pública na criação cultural, sobretudo nas áreas mais dependentes de subsídio, é imaginar o país sem, por exemplo, cinema ou teatro. Que iriam pensar os ingleses? Ou os alemães? Tem, portanto, de haver cinema e teatro. Mas como escolher quem deve fazer filmes ou subir ao palco?

Não ajuda que na criação cultural, os “critérios objetivos” – audiências, por exemplo — sejam motivo de escárnio. Por mais escolhido que tenha sido o júri ou mais escrupuloso o concurso, a injustiça reina sempre. Ora bem, há uma solução. Admitindo que o fim da despesa pública nas artes é a mesma de antigamente, isto é, o prestígio do poder, porque não admitir também que essa despesa deve ser, como antes, da responsabilidade pessoal dos titulares dos cargos públicos, enquanto mecenas por conta do Estado?

Sim, leram bem. Estou a propor que o presidente da república possa ser um Filipe II, ou o primeiro ministro um Luís da Baviera. O dinheiro das artes ser-lhes-ia confiado para gastarem no que quisessem, como quisessem. Para quê continuar a acreditar na burocracia supostamente imparcial? Por que não dar um rosto às escolhas? Dir-me-ão: mas seria o arbítrio, talvez a partidarização da “cultura”! Mas não é já disso que se queixam? Esta solução, por exemplo, poderia acabar com a ideia de que a “cultura” é de esquerda, porque talvez presidentes ou primeiros-ministros da direita descobrissem algum cinema ou teatro cujo fim não fosse destruir o capitalismo. A vantagem principal, porém, é esta: uma maior transparência. O presidente e o primeiro-ministro seriam pessoalmente responsáveis pelas obras subsidiadas.

Para que filmes deu Marcelo Rebelo de Sousa dinheiro? Que companhias de teatro ajudou António Costa a salvar? Talvez se esforçassem, por cálculo político, para ficarem associados a alguma qualidade. Mas mesmo que não, é provável que os resultados não fossem piores do que agora com os concursos. E tudo seria mais divertido — e revelador.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 13-4-2018

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