Gabriel Mithá Ribeiro
Os autolegitimados pensadores de África
tudo têm feito para aniquilar o melhor da herança colonial europeia,
desperdiçando o mais raro, original e notável contributo de modernização do
continente.
‘Os condenados da terra’ (1961), de Frantz Fanon, foi
traduzido e publicado em Portugal (2015). A contracapa apresenta o argumento: «(…)
as nações europeias chafurdam na mais ostensiva das opulências. Essa opulência
europeia é literalmente escandalosa porque foi construída à custa dos escravos,
alimentou-se do sangue dos escravos, vem diretamente do solo e do subsolo desse
mundo subdesenvolvido. O bem-estar e o progresso da Europa foram construídos
com o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos indianos e dos amarelos.
Isso, decidimos nunca mais esquecer» (citação p.98).
No prefácio intitulado ‘A
pertinência de se ler Fanon, hoje [2015]’ Inocência Mata, professora da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, declara o autor «(…) um dos
maiores pensadores do século XX» (p.33).
Frantz Fanon nasceu numa
família de classe média da Martinica (América Central), passou pela Argélia
durante a segunda guerra mundial (África Árabe ou Branca, terra-mãe de antigos
colonizadores escravocratas) e viveu um período de preparação académica e
atividade intelectual em França (Europa Ocidental), extensível a outras
paragens ocasionais do Norte de África. Tal experiência em 36 anos de uma vida
terminada poucos dias após a publicação do livro não fazem necessariamente do
autor especialista de um fenómeno cuja componente substantiva equacionada a
propósito dos seus escritos decorreu numa outra África, a Subsaariana, a África
Negra.
Que se saiba, a dominação
colonial europeia no Magrebe não abalou as tradições linguísticas, religiosas,
culturais e de cultura escrita, urbanísticas, econômicas ou, em geral,
civilizacionais do mundo árabe islâmico. Pelo contrário, o impacto da presença
europeia a sul do Saara foi de tal modo distinto que não legitima análises por
analogia ou telepatia, por muito que o autor se escude em alegações retóricas
(pp.164 e segs.).
Seduzidos pela fluência de um
discurso febril, académicos e intelectuais beberam e bebem muito nas fontes
fanonianas ou equiparáveis e pouco ou quase nada na fonte original, o senso
comum africano. As lucubrações de Frantz Fanon são, na hipótese benigna,
ficcionais e, na hipótese rigorosa, dos mais virulentos panfletos de ódio e subversão
violenta contra o ser, contra o que indivíduos e povos são. Aconteça o que
acontecer, o presente jamais resgatará a identidade criminosa de uns e a
identidade de vítima de outros.
O texto revela um mestre na
lógica argumentativa da desconfiança patológica na relação com os outros
(pessoas e povos) e na manipulação tosca da realidade. Todavia, os meios
universitários têm-lhe concedido por mais de meio século o privilégio de
propalar à luz do dia princípios da violência totalitária. Da tipificação de Hannah
Arendt, destaco a definição do ‘inimigo objetivo’, o grupo condenado pela
ideologia ao extermínio independentemente da conduta individual dos seus
membros.
Frantz Fanon limita-se a fazer
transitar a objetivação do Mal do ‘burguês’, de Karl Marx e Friedrich Engels,
ou do ‘judeu’, de Adolf Hitler, para o branco europeu ‘colonialista’, ‘imperialista’,
‘burguês’ e ‘capitalista’. Fá-lo porque também objetiva a vítima.
Não é o ‘proletário’ (raro em África) e nem poderia ser a ‘raça ariana’.
Coloca no pedestal o ‘colonizado’ ou o ‘povo colonizado’, mas não
um qualquer, antes o ‘puro’ à moda ariana. É o ‘árabe’ ou o ‘africano’ que
suportaram o fardo histórico da opressão sem se deixarem contaminar pelo poder
‘colonialista’ europeu, ao contrário das suas ‘elites’ em ‘pequeno
número’ ou ‘micro burguesia’.
Seguindo à risca o guião dos
paranoicos totalitários, as categorias do pensamento referidas e outras são
imutáveis, coesas, estáticas, sem matizes. Se um jogo argumentativo com tais
pressupostos é sempre uma fraude intelectual, em Frantz Fanon é de cátedra
porque filiada a uma ostensiva orgia de violência.
Realizei trabalhos de campo no
meu país natal, Moçambique, entre 1997 e 2015 para conversar com os mais
variados tipos sociais. Entre as conclusões sólidas destaco a heterogeneidade
das apreciações sobre as relações com os antigos colonizadores na perspectiva
dos antigos colonizados. Basta admitirmos que a vida vivida dificilmente
permite omitir a ultrapassagem dos bloqueios das sociedades tradicionais
africanas proporcionada pelo surgimento da sociedade colonial, bem como que a ruptura
com os colonos europeus não significou o paraíso nas relações de poder entre
africanos.
A realidade vivida jamais
legitima a tese do ‘colonizado’ enquanto massa coesa,
homogénea, inabalável contra os colonos europeus, mesmo e sobretudo os mais
pobres. A realidade esteve e está nos antípodas do pensamento monolítico de
Frantz Fanon. Como bom revolucionário, revela não se ter preocupado em ajustar
o seu pensamento ao real. Antes procurou colocar o último em ordem, tal como um
físico talvez devesse ter o direito de censurar a estúpida rebeldia dos átomos: «(…)
há que dizê-lo, as massas mostram uma total incapacidade para apreciar o
caminho percorrido, o camponês continua a amanhar a terra e o desempregado que
assim se mantém não conseguem (…) convencer-se de que algo mudou
verdadeiramente nas suas vidas» (p.173).
Iluminados por Fanon,
desprezar os ‘assimilados’, os africanos que conseguiram
dignificar-se e às suas famílias valorizando-se na sociedade colonial (sempre
muitíssimo mais do que a sociedade do colono europeu), passou a ser ‘objetividade’ analítica.
De nada importa estar em causa dos fenómenos históricos mais interessantes
de ‘multiculturalismo’ (admitindo a utilidade do termo), posto que
tudo o que teve origem no branco tem de ser extirpado. A África, mesmo
conquistando as independências, terá sempre de fazer esforços colossais para
‘libertar as mentes’, limpá-las de resquícios do contato com os europeus e com
a sua cultura colonial, tanto quanto precaver-se das novas pestilências ‘neocolonialista’ ou ‘neoliberal’.
Em 1961, o precursor Frantz Fanon semeou a magia dessas palavras que
prolongariam no tempo a representação execrável do europeu e do branco. Não
importa o absurdo do autor propalar com veemência a defesa identitária dos
africanos num refinado francês (mas poderia ser em inglês ou português).
Mais de meio século passado, a
mesma lógica argumentativa paranoica é razão maior para uma professora
universitária, Inocência Mata, assumir em Lisboa ‘A pertinência de se ler
Fanon, hoje [2015]’.
Comparado, o ‘Mein
Kampf’ (1925), de Adolf Hitler, teve tripla vantagem: não foi obra de
culto nas universidades; não teve difusão por todos os continentes; e preservou
a decência de lançar a semente venenosa em terra própria forçando os da casa a
terem de curar a sua demência coletiva ao fim de duas décadas.
O lado sórdido da fúria
inquisitorial de Frantz Fanon resulta também da sua técnica retórica usar e
abusar da adjetivação com grande vantagem para a depreciativa, atitude nos
antípodas dos mais elementares critérios da qualidade dos discursos sobre a
condição humana e a justiça.
No ciclo do impacto sempre
crescente de ‘um dos maiores pensadores do século XX’ (dos anos sessenta à
atualidade), os auto legitimados pensadores de África tudo têm feito para
aniquilar o melhor da herança colonial europeia, desperdiçando o mais raro,
original e notável contributo de modernização do continente, apesar de todas as
violências que, de resto, África nunca conseguiu exorcizar antes, durante e
após a dominação europeia. E nada indicia que os africanos voltem a beneficiar
de uma herança equiparável.
Na Europa Ocidental, no topo
dos responsáveis pela propagação do totalitarismo intelectual, semente sempre
latente de violência social e política, encontram-se os académicos no seu
conjunto por se deixarem arrastar numa indisfarçável cobardia intelectual
dentro das suas próprias instituições. Não se detectam reações individuais
salientes face a uma pregação milenarista (experimente-se substituir ‘colonialista’ por
‘demónio’) transformada em suprassumo do saber em salas de aula da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, do Centro de Estudos Sociais
(CES) da Universidade de Coimbra, do ISCTE-IUL e por todo o lado onde se ensina
Frantz Fanon.
Versão recauchutada do Führer,
resignemo-nos ao grande intelectual que fez nascer, no século XX, o tempo de os
europeus (e os) brancos pedirem desculpa por existir(em). Alguns portugueses já
provaram dessa fúria aniquiladora nos idos de 1974 e 1975: «Trabalhar é
trabalhar pela morte do colono. (…) O homem colonizado liberta-se na e pela
violência» (pp.88-89). Ao que o messias da Martinica acrescenta: «A
reparação moral da independência nacional não nos cega nem nos alimenta. A riqueza
dos países imperialistas é também a nossa riqueza» (pp.103-104). Os
apóstolos da Igreja Universal das Universidades (passo a redundância) cumprem a
missão de propagarem os sagrados ensinamentos do Profeta Fanon na preparação do
advento do êxodo terceiro-mundista rumo à redentora Ocidental Terra Prometida.
O Mediterrâneo é o purgatório que anuncia o direito ao céu na terra do novo
povo eleito.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador, 5-5-2018
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