quinta-feira, 10 de maio de 2018

Um recado aos xiitas: perguntar não ofende

Ana Paula Henkel

Diz um provérbio chinês: quem pergunta é ignorante por cinco minutos, quem não pergunta é ignorante para sempre. Sempre fui metida a fazer perguntas, muito antes de saber que a própria filosofia foi fundada por um homem que fazia perguntas: Sócrates. Num momento de tantas certezas, eu gostaria de convidar você a fazer perguntas, como vejo o povo americano fazendo por aqui nas ruas.

A mudança de perspectiva não é trivial. Chesterton, uma das grandes mentes do século passado, dizia não temer quem não enxergava a solução, mas quem não enxergava o problema. Voltaire julgava um homem mais pelas perguntas que fazia do que pelas respostas que dava, um conselho que eu sempre levei a sério. Picasso ironizava os computadores dizendo que eles não serviam para nada porque só conseguiam dar respostas. Uma boa resposta começa com as perguntas certas.

Quando todos dizem que Trump errou ao sair do acordo com o Irã, acordo assinado pelo antecessor, uma unanimidade daquelas que Nelson Rodrigues classificaria em termos nada elogiosos, eu peço, com a devida vênia, vistas ao processo. O assunto é sério demais para entrarmos no oba-oba de uma imprensa cada vez mais radicalizada e ideologizada, com reflexos diretos na sua credibilidade e na audiência. Jornalismo não pode ser assessoria de imprensa.

A decisão de Trump é, em grande parte, baseada no levantamento do serviço secreto de Israel revelado por seu primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, em janeiro e que a imprensa preferiu relegar às notas de rodapé. O Mossad acumulou mais de 100 mil documentos sobre o programa nuclear do Irã que estaria sendo desenvolvido secretamente, mas o noticiário quer que acreditemos que Trump saiu da cama com o topete rebelde um dia e, na falta de algo melhor para fazer, decidiu rasgar o acordo. Será?

A maneira com que a imprensa tratou as revelações bombásticas do governo israelense foi particularmente curiosa. Até o dia anterior, éramos levados a acreditar que os abnegados aiatolás estavam cumprindo os termos do acordo e não perseguiam secretamente seu programa nuclear, mas ao terem seus segredos revelados a reação da mídia internacional foi “não há nada de novo”. Agora querem que acreditemos que a meia tonelada de documentos e arquivos de computador capturada pelo Mossad em Teerã, com provas de que o regime iraniano estava mesmo trabalhando no desenvolvimento do seu arsenal nuclear em flagrante desrespeito ao acordo, não é nada demais e devemos voltar a discutir o cabelo de Trump ou o sotaque de Melania. Estranho, para dizer o mínimo.

Se o Irã está respeitando os termos do acordo de 2015, é possível defender sua manutenção e futuras negociações a partir do que já foi negociado, mas ao assumir essa posição estaremos assumindo que Israel mente. Entre a palavra dos aiatolás e da única democracia da região, estaríamos optando pelos primeiros. Confesso que não estou convencida de que o regime iraniano é mais confiável do que a palavra dos israelenses, mas vou continuar ouvindo e analisando com a mente aberta tudo que os respeitáveis jornalistas alinhados com a posição do Irã e dos países signatários do antigo acordo estão dizendo.

Por mais que tentemos ignorar, o Irã está em guerra contra o “Grande Satã” desde 1979 e não esconde. Há poucas dúvidas de que o país é o maior financiador do terrorismo mundial há décadas. As manifestações de rua dos apoiadores do regime são embaladas com gritos de “Morte à América”. Seus líderes não se envergonham de defender o fim do estado de Israel. Qualquer alinhamento com o regime dos aiatolás por democracias ocidentais deveria ser vista com toda cautela.

O Ocidente sempre teve e terá seus apaziguadores. O mais célebre deles foi Neville Chamberlain [foto], o primeiro-ministro britânico que assinou o infame acordo de Munique em 1938 com as mesmas promessas pacifistas que ouvimos em 2015 em relação ao Irã. A conta criada pelos defensores da diplomacia a qualquer custo foi paga com 55 milhões de cadáveres no conflito mais sangrento da história. Projetar em regimes ditatoriais e expansionistas as próprias convicções democráticas tem consequências.

Depois da histeria, acredito que o mundo precise de boas doses do que os americanos estão fazendo cada vez mais nas conversas do dia-a-dia: questionar. Será que devemos mesmo acreditar cegamente na propaganda, na gritaria, na opinião única ditada pelas agências internacionais de notícias? Ou será que ainda é cedo para termos certeza de quem oferece mais riscos ao mundo, a inteligência israelense ou os líderes iranianos, seus lobistas e os apaziguadores da política?

No Brasil, “xiita” virou sinônimo de fanático, teimoso e inflexível. Sei que muitos xiitas, na acepção tupiniquim do termo, vão tentar a todo custo calar o debate e impor a versão autorizada dos fatos ditada pelo Partido Democrata e seus militantes nas redações. Eu prometo resistir até ser convencida com fatos, evidências, lógica e provas. Até lá, vou continuar fazendo perguntas. E você?
Título e Texto: Ana Paula Henkel, O Estado de S. Paulo, 10-5-2018

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