Aparecido Raimundo de Souza
Bispo Burcardo de Worms
ALICE É UMA ESPÉCIE de velho mal sem cura escondido.
Assemelha a ferida aberta estropiciadamente exposta a todas às adversidades não
cicatrizadas. Apesar de bonita aos ápices insulados, rosto perfeito, corpo
esbelto, pernas torneadas em grau certo e perfeito, de possuir no mesmo rol o
abecedário completo dos dotes exigidos por homens de gostos discernidos, vive
melhor dito, vegeta, perceptível, como um ramalhete de espinhos fincados na
própria carne as penitências mais infames de uma pusilânime enfraquecida.
A sua beleza rara, enigmática e ao mesmo tempo singela,
vista pelo avesso, deixa a impressão de um beijo sem gosto, insosso, sem
tempero, insípido, choco, respingado a sabor de fel, de azedamento e repulsa,
de bílis como cacos-riscos para quem dele tiver o desprazer de testemunhar a
provação, a têmpera, o traço, o agrado e a voluptuosidade.
Seus olhos perscrutam em redor como uma dança estranha de
algozes em torno de cadáveres mutilados. Ameba comida por outros vermes da
mesma estirpe carrega, no peito, uma bolsa de suprimentos para sobrevivência de
si mesma num habitat totalmente sem sentido obscuro e embrutecido. Caricatura
mal traçada de um passado espúrio e indigesto, se coaduna com a desarmonia do
feio e do grotesco, que paira sobre a sua cabeceira linda e impecável, de fios
sedosos que terminam em cascata, à altura da cinturinha lavrada sobre medida.
Cômica, burlesca, divertida, conspícua, ríspida, braba,
grosseira, violenta, nervosa, lembra uma equilibrista de fios ariadianos
(dessas mambembes) que fazem proezas e traquinagens em espetáculos circenses
para adultos de gostos duvidosos. De resto, nas horas em que se dispõe a ficar
só com suas anomalias e deformidades, abantesmas e visagens distorcidas, ouve,
em alto som, Danni Carlos, Céline Dion, Emmerson Nogueira, Paloma Faith, Elem
Nara, Luiz Gareau, Nirvana, Gaag e ABBA.
Acha que embora seja diferente para os demais, afiança,
fazendo figurinha, haja o que houver, sempre haverá uma vaga no inferno para as
mulheres que enganam o capeta. Comumente se deleita, ora dançando “Always On My
Mind”, “Recovering”, “Only love Can Hurt Like This”, ora cantando, em segunda
voz, junto com o intérprete, microfone invisível nas mãos, os “Sentimentos”, e
os “Desejos de um apaixonado”, ou rebolando como uma desvairada doidivanas,
Tulipa Ruiz.
Adora a ametista das pedras e se encanta com o amarelo
desbotado dos finais de tarde. Perde um tempo enorme com o esmaecido do sol, o
pálido da vida, o descorado dos seus becos e ruelas, o duvidoso dos seus
passos, o diário que se transforma num cotidiano atrapalhado, dúbio, caótico e
apocalipticamente enfadonho. Alice tem uma raiva tremenda e gigantesca da outra
Alice. Aliás, considera a jovem a sua rival maior, a eterna, a imortal. A Alice
de Lewis Carroll.
Talvez porque o seu “País das Maravilhas” não seja o igual
chão ideal, o canto almejado, o espaço quimerado em noites dormidas a
solavancos e anipnias. Pelo espelho do seu quarto, não vê a toca do Coelho,
somente a lagoa de lágrimas, com um baita Porco e pimenta em demasia, lhe
queimando garganta a baixo, o gosto de tudo o que leva à boca, e uma Tartaruga
falsa, lhe arrebatando as tortas. Não só as tortas, as retorcidas e, de roldão,
as aleijadas.
Alice atravessa a si mesma, num vai e vem descomedido,
bagunçado, infrene, convulso e desordenado. No jardim das suas jornadas,
encontra sempre uma Coruja que lhe encara demudada, embirrada numa aversão
colerizada de fatos não realizados. Do outro lado, uma Pantera negra como o
porvir, se transforma numa gulosa voraz, embotada, querendo fazer dela, da sua
carne fraca, o seu melhor banquete para um dia que parece longevo e infindo.
Alice então corre, desabala em uma arrancada de vida ou
morte. Todavia, de repente, num repente, todo o quadro ao seu perímetro visível
se modifica. Velho mal sem cura, ferida aberta, chaga carcomendo a pele num
inevitável imorredouro. À sua frente, sendas incertas, trilhas e veredas que
não levam a lugar nenhum. Alice é uma febra apoquentada, flagelada, tribulada
na dolência de um cemitério desolado criado em torno de si. Chora, pois,
convulsa, trêmula, agitada, apesar de formosa e deslumbrante, não obstante
aspectada num elegante ímpar e inimitável.
Sente que o aprazível da sua existência se torna medíocre ao
tempo em que se esvai pelas grelhas e tubulações do destino. A morte lhe cai
bem. Talvez o além-túmulo lhe dê o que esta vida sempre negou. A felicidade.
Não só ela, o amor, o carinho, a magia incopiável de ser amada, desejada e
querida. Morrer. Solução final sem mais delongas.
Só lhe resta essa saída. A mais cruel, todavia, honrosa,
apropriada. Escafeder, de vez, e ver tudo virar um amontoado de pó junto com
suas loucuras e insanidades. Consumir os sentidos. Destragar o ar, enfumaçar as
vistas. Enuviar o céu, desassossegar o mar. Manchar o infinito... ver aos
poucos, se rarear, no mesmo plano, o espaço factum símile o “Always On My
Mind”, o “Recovering”, o “Only Love Can Hurt Like This...” tocando disparadas,
em execuções contínuas, emboladas, entrelaçadas a um só tempo, sem tempo.
No profundo dos confins do tinhoso, inertes mutilados,
amebas, cartuns mal traçados, adultos de gostos duvidosos, espinhos
incrustrados na carne... na carne enterrados no peito, selvageados nos sonhos.
Cravadurados a duros golpes de um punhal certeiro no âmago... o amarelo do sol,
o cotidiano abodegado, contrariado, a outra Alice. Círculo fechado. Limite sem
volta.
A Alice de Lewis Carroll, as tortas, a Pantera negra – a
Pantera negra. Quem sabe o Lúcifer disfarçado? Embora diferente Alice... posto
que mais desigual que venha ou possa parecer, não perde a esperança. Haverá uma
vaga, um cantinho um desvão para mulheres que enganam o Coisa-Ruim.
ESCLARECIMENTO NECESSÁRIO: Em português, a tradução literal
da frase frontispiciada do Bispo Burcardo de Worms, do livro “A Pane e acqua,
peccati e penitenze nel medioevo”, Edição original Italiana, 1998, 118 páginas.
“Uma morte digna é melhor do que uma vida torpe”.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. De
São Paulo, Capital. 5-6-2018
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Desculpe-me Aparecido, pela minha "sã ignorância", que apologia é essa, santo Deus! Melhor se precaver, pois vai dá muito o que falar!
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