quarta-feira, 6 de junho de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Hortus clausus

Aparecido Raimundo de Souza

Honesta mors turpi vita potior
Bispo Burcardo de Worms

ALICE É UMA ESPÉCIE de velho mal sem cura escondido. Assemelha a ferida aberta estropiciadamente exposta a todas às adversidades não cicatrizadas. Apesar de bonita aos ápices insulados, rosto perfeito, corpo esbelto, pernas torneadas em grau certo e perfeito, de possuir no mesmo rol o abecedário completo dos dotes exigidos por homens de gostos discernidos, vive melhor dito, vegeta, perceptível, como um ramalhete de espinhos fincados na própria carne as penitências mais infames de uma pusilânime enfraquecida. 

A sua beleza rara, enigmática e ao mesmo tempo singela, vista pelo avesso, deixa a impressão de um beijo sem gosto, insosso, sem tempero, insípido, choco, respingado a sabor de fel, de azedamento e repulsa, de bílis como cacos-riscos para quem dele tiver o desprazer de testemunhar a provação, a têmpera, o traço, o agrado e a voluptuosidade. 

Seus olhos perscrutam em redor como uma dança estranha de algozes em torno de cadáveres mutilados. Ameba comida por outros vermes da mesma estirpe carrega, no peito, uma bolsa de suprimentos para sobrevivência de si mesma num habitat totalmente sem sentido obscuro e embrutecido. Caricatura mal traçada de um passado espúrio e indigesto, se coaduna com a desarmonia do feio e do grotesco, que paira sobre a sua cabeceira linda e impecável, de fios sedosos que terminam em cascata, à altura da cinturinha lavrada sobre medida.

Cômica, burlesca, divertida, conspícua, ríspida, braba, grosseira, violenta, nervosa, lembra uma equilibrista de fios ariadianos (dessas mambembes) que fazem proezas e traquinagens em espetáculos circenses para adultos de gostos duvidosos. De resto, nas horas em que se dispõe a ficar só com suas anomalias e deformidades, abantesmas e visagens distorcidas, ouve, em alto som, Danni Carlos, Céline Dion, Emmerson Nogueira, Paloma Faith, Elem Nara, Luiz Gareau, Nirvana, Gaag e ABBA.

Acha que embora seja diferente para os demais, afiança, fazendo figurinha, haja o que houver, sempre haverá uma vaga no inferno para as mulheres que enganam o capeta. Comumente se deleita, ora dançando “Always On My Mind”, “Recovering”, “Only love Can Hurt Like This”, ora cantando, em segunda voz, junto com o intérprete, microfone invisível nas mãos, os “Sentimentos”, e os “Desejos de um apaixonado”, ou rebolando como uma desvairada doidivanas, Tulipa Ruiz.

Adora a ametista das pedras e se encanta com o amarelo desbotado dos finais de tarde. Perde um tempo enorme com o esmaecido do sol, o pálido da vida, o descorado dos seus becos e ruelas, o duvidoso dos seus passos, o diário que se transforma num cotidiano atrapalhado, dúbio, caótico e apocalipticamente enfadonho. Alice tem uma raiva tremenda e gigantesca da outra Alice. Aliás, considera a jovem a sua rival maior, a eterna, a imortal. A Alice de Lewis Carroll.

Talvez porque o seu “País das Maravilhas” não seja o igual chão ideal, o canto almejado, o espaço quimerado em noites dormidas a solavancos e anipnias. Pelo espelho do seu quarto, não vê a toca do Coelho, somente a lagoa de lágrimas, com um baita Porco e pimenta em demasia, lhe queimando garganta a baixo, o gosto de tudo o que leva à boca, e uma Tartaruga falsa, lhe arrebatando as tortas. Não só as tortas, as retorcidas e, de roldão, as aleijadas.

Alice atravessa a si mesma, num vai e vem descomedido, bagunçado, infrene, convulso e desordenado. No jardim das suas jornadas, encontra sempre uma Coruja que lhe encara demudada, embirrada numa aversão colerizada de fatos não realizados. Do outro lado, uma Pantera negra como o porvir, se transforma numa gulosa voraz, embotada, querendo fazer dela, da sua carne fraca, o seu melhor banquete para um dia que parece longevo e infindo.

Alice então corre, desabala em uma arrancada de vida ou morte. Todavia, de repente, num repente, todo o quadro ao seu perímetro visível se modifica. Velho mal sem cura, ferida aberta, chaga carcomendo a pele num inevitável imorredouro. À sua frente, sendas incertas, trilhas e veredas que não levam a lugar nenhum. Alice é uma febra apoquentada, flagelada, tribulada na dolência de um cemitério desolado criado em torno de si. Chora, pois, convulsa, trêmula, agitada, apesar de formosa e deslumbrante, não obstante aspectada num elegante ímpar e inimitável.

Sente que o aprazível da sua existência se torna medíocre ao tempo em que se esvai pelas grelhas e tubulações do destino. A morte lhe cai bem. Talvez o além-túmulo lhe dê o que esta vida sempre negou. A felicidade. Não só ela, o amor, o carinho, a magia incopiável de ser amada, desejada e querida. Morrer. Solução final sem mais delongas.

Só lhe resta essa saída. A mais cruel, todavia, honrosa, apropriada. Escafeder, de vez, e ver tudo virar um amontoado de pó junto com suas loucuras e insanidades. Consumir os sentidos. Destragar o ar, enfumaçar as vistas. Enuviar o céu, desassossegar o mar. Manchar o infinito... ver aos poucos, se rarear, no mesmo plano, o espaço factum símile o “Always On My Mind”, o “Recovering”, o “Only Love Can Hurt Like This...” tocando disparadas, em execuções contínuas, emboladas, entrelaçadas a um só tempo, sem tempo.

No profundo dos confins do tinhoso, inertes mutilados, amebas, cartuns mal traçados, adultos de gostos duvidosos, espinhos incrustrados na carne... na carne enterrados no peito, selvageados nos sonhos. Cravadurados a duros golpes de um punhal certeiro no âmago... o amarelo do sol, o cotidiano abodegado, contrariado, a outra Alice. Círculo fechado. Limite sem volta.

A Alice de Lewis Carroll, as tortas, a Pantera negra – a Pantera negra. Quem sabe o Lúcifer disfarçado? Embora diferente Alice... posto que mais desigual que venha ou possa parecer, não perde a esperança. Haverá uma vaga, um cantinho um desvão para mulheres que enganam o Coisa-Ruim.

ESCLARECIMENTO NECESSÁRIO: Em português, a tradução literal da frase frontispiciada do Bispo Burcardo de Worms, do livro “A Pane e acqua, peccati e penitenze nel medioevo”, Edição original Italiana, 1998, 118 páginas. “Uma morte digna é melhor do que uma vida torpe”. 
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista.  De São Paulo, Capital. 5-6-2018

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Um comentário:

  1. Desculpe-me Aparecido, pela minha "sã ignorância", que apologia é essa, santo Deus! Melhor se precaver, pois vai dá muito o que falar!

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