domingo, 3 de junho de 2018

Pisando no freio da revolução

Ana Paula Henkel

Depois do Brasil ter parado, literalmente, e enfrentado dias venezuelanos devido à greve dos caminhoneiros, o país começa a voltar ao normal nas estradas e rodovias, mas não nas redes sociais. As vias virtuais continuam tumultuadas, motoristas ainda exaltados e muitos dirigindo embriagados. Se beber, não dirija nem use as redes sociais, vai dar PT.

Declaração de Independência dos EUA, quadro de John Trumbull, 1819
De todos os cantos das redes (cada dia menos) sociais, o que mais me espanta é aquele que ainda tenta relacionar as estradas bloqueadas da histórica greve dos caminhoneiros, as prateleiras vazias dos mercados, a intimidação muitas vezes violenta de quem quer trabalhar (um caminhoneiro infelizmente foi agredido e faleceu), as escolas sem aulas, os hospitais sem remédios, as propriedades rurais ilhadas, com a Revolução Americana. Posso não entender de muita coisa na vida, mas quero, se me permitem, esclarecer um ponto ou outro sobre o que aconteceu aqui nas terras do Tio Sam no final do séc. XVIII e evitar revisionismos históricos que beiram a insanidade.

Num sermão proferido em 1750 em Boston, o pastor graduado em Harvard, Jonathan Mayhew disse: “nenhuma taxação sem representação” (“no taxation without representation”), frase que logo se tornou um bordão na costa americana banhada pelo Atlântico. Anos mais tarde, também em Boston, a frase ecoava como fonte de inspiração para os colonos da coroa britânica através de James Otis, um político local, que a adaptou para “taxação sem representação é tirania”. Os colonos americanos acreditavam que, como cidadãos britânicos, não estavam suficientemente representados no parlamento londrino e que, portanto, este não teria legitimidade para governar a colônia. A coroa britânica estava longe de ser um império totalitário e ditatorial para os parâmetros da época, mas com os elevados gastos das guerras travadas contra a França entre 1754 e 1763 houve a necessidade de fazer caixa e a colônia era vista como um enorme caixa eletrônico para saques.

Muitas decisões unilaterais foram tomadas pela Inglaterra, chegando às “Leis Intoleráveis” de 1774 que tornaram a Guerra de Independência inevitável. O que diferencia a Revolução Americana de praticamente todas as outras, especialmente da Revolução Francesa ocorrida poucos anos depois, é que em vez de rios de sangue nas ruas, cabeças guilhotinadas e todo tipo de barbárie bestial contra tudo e todos, os Pais Fundadores da América entenderam que estavam sendo tratados injustamente como súditos de segunda classe do Rei e que precisavam de um plano bem executado para se libertarem das injustas imposições da coroa britânica.

O que seu viu, então, foi uma revolução baseada em ideias, conduzida por gigantes intelectuais e morais da história, que se rebelaram contra uma “quebra de contrato” da coroa britânica e que buscou, com inigualável sucesso, recriar na ex-colônia uma sociedade nos moldes da pátria-mãe, mas longe da tirania de um monarca específico. A América não queria “enforcar o último rei nas tripas do último padre” como os jacobinos franceses, muito pelo contrário, como se provou na Declaração da Independência, no Bill of Rights e na Constituição promulgada pouco depois.

John Adams, George Washington, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, entre outros seres realmente iluminados e únicos, queriam um país com governo controlado, cidadãos livres para buscar a própria felicidade sem a intermediação, controle, ingerência ou supervisão da burocracia estatal. O resultado foi a sociedade mais próspera e bem-sucedida da história da humanidade, enquanto os jacobinos criaram O Terror, abriram o caminho para a ascensão de Napoleão e de uma perda de protagonismo da França com consequências até os dias de hoje.

As conquistas da Revolução Americana foram únicas porque seus ideais, métodos e valores eram igualmente únicos, daqueles que nós, apenas quatro anos antes do bicentenário da nossa própria independência, poderíamos estudar e relembrar um pouco mais antes de citar como exemplo de insubordinação ou desobediência civil. Comparar a Revolução Americana com a Revolução Francesa ou qualquer outra revolução promovida por líderes carismáticos contra “tudo isso que está aí” é como comparar o trabalho de um lenhador sério com “O Massacre da Serra Elétrica”.

A natureza humana traz dentro de todos nós um Robespierre e um John Adams, cabe a cada um decidir qual voz interna falará mais alto. Sou filha de pais professores, classe sufocada e desprezada em quase todos os governos, entendo perfeitamente e me solidarizo com o drama de toda categoria profissional brasileira que se encontra presa numa cadeia de regulações insanas, impostos extorsivos e reféns dos burocratas e políticos insaciáveis que devoram quase metade de tudo que o brasileiro produz, sem devolver praticamente nada à sociedade. A sensação é de verdadeira “taxação sem representação” e isso tem que mudar, e para ontem, ou o país do futuro será sempre o lupanário do atraso ideológico, político e econômico. No entanto, como meu saudoso pai dizia, e como em tudo na vida é importante que se diga, os fins nem sempre justificam os meios.

Se mudar o país utilizando as instituições democráticas é lento e com resultados incertos, quebras institucionais levam sempre a mais problemas do que aqueles que diziam querer resolver. O Brasil já está na sua sétima Constituição e não é exatamente comum na nossa história que um presidente eleito, que tenha recebido o governo de outro eleito, passe a faixa para um sucessor também eleito. Sem continuidade e estabilidade, sem o império das leis, como ingleses e americanos nos mostram há séculos, não há escapatória. Nas estradas e na democracia, não existem atalhos.

A falta de liderança e autoridade de um governo fraco, que hoje entregou a cabeça de Pedro Parente e as joias da coroa num fim melancólico de mandato, mesmo que com alguns bons resultados na economia, é uma carniça que sempre atrai os abutres, nas estradas da política e nas vias das redes sociais, mas cabe a cada um de nós, especialmente os que se auto intitulam conservadores, que as paixões revolucionárias do momento possam ser refreadas em função do senso comum e do bem estar de todos os cidadãos que sofreram e ainda estão sofrendo com o caos provocado pelas paralisações. Não é possível socializar prejuízos em nome de pautas privadas e ainda se dizer liberal, pelo menos no sentido clássico da palavra.

Lênin, Fidel, Che, Pol Pot, Mao e até Robespierre podem inspirar os sonhos de intelectuais e até de políticos oportunistas, mas são os prudentes, sábios, legalistas e morais da Revolução Americana que devem servir de exemplo para qualquer democrata. O preço da gasolina está caro, mas o custo de uma revolução baseada no caos é ainda maior, como estamos cansados, mas muito cansados de saber.

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