Aparecido
Raimundo de Souza
Rico
Salomão no pórtico de seu livro “Painel de Silêncio”. Editora Independente.
2018.
-
Aqui dentro é realmente complicado. Nada para se fazer nada para se distrair
nada para se comer. Nada para se ver ou ouvir. Uma televisão para eu acompanhar
os jogos do meu Botafogo. O que mais apavora? Ficar o tempo todo deitado. Ou
aqui, como estamos agora, parado feito dois idiotas olhando para o tempo. Estou
com o corpo cansado. Moído. Meu Deus! Reparou que ando meio arcado?
-
Ao amigo assiste total razão. Realmente aqui é um pé no saco. Me atrevo a ir
até mais além. Se ao menos tivéssemos uma academia para dar trabalho aos ossos,
uma biblioteca, uma piscina, uma pracinha para a gente se sentar e jogar uma
partida de buraco, dama, xadrez ou sei lá. Qualquer merda seria melhor que essa
ociosidade. A ociosidade escraviza a alma. E o nada para fazer, envelhece o
espírito, enruga o coração.
-
Verdade. Falei com o seu Elizeu aqui do nosso lado. Ele me garantiu que falaria
com o administrador, mas, ao que parece...
-
Vai ver esqueceu. Depois que a gente vem para cá e fica longe da família, dá
uma espécie de leseira mental irreversível. A mim, por exemplo, às vezes me
custa lembrar certas coisinhas básicas, como a rua e a quadra que moramos, o
lote, o número do buraco.
Risos.
-
Comigo não é diferente. O mesmo fato ocorre. Ontem mesmo a Samanta me perguntou
a idade e você acredita que deu um branco?
-
Acredito.
-
Um porre, quando isso vem à tona.
-
Verdade.
-
E conseguiu lembrar depois?
-Sim...
foi só sair da beira dela, pimba, tudo aclarou.
-
E para que a Samanta queria ou quer saber a sua idade?
Esquece.
Não vem ao caso.
O
outro interlocutor, todavia, com um sorriso de deboche, insistiu:
-
Fale.
-
Coisas de mulher. Elas são curiosas aos extremos.
-
Desembucha. Para que todo esse mistério?
-
Estamos trocando ideias.
-
Entendi. Havia percebido.
-
É?
-
Sim... vocês dois falam pelos olhos...
-
Bom saber.
-
Dá para a gente captar de longe que entre vocês rola um queimão, como dizem os
jovens.
-
Entendo.
-
Por conta disso, posso fazer uma pergunta indiscreta?
-
Faça.
-
Ela é bem mais nova que você, não é?
-
Sim é. E muito. E eu pergunto: e daí? No
que isso muda as coisas? O que importa o que manda o que conta é o coração.
-
Isso mesmo. Você está coberto de razão. A propósito disso, qual a sua idade?
-
Cinquenta.
O
indagante caiu na mais estrondosa gargalhada.
-
Cinquenta? Fala sério!
-
Estou falando.
-
Depois de velho deu para mentir. Quando você veio para cá tinha sessenta. Vinte
anos se passaram, desde então. Logo...
-
Logo?
-
Você está hoje, pelas minhas contas, com oitenta ou mais um pouquinho. E bota
pouquinho nosso...
-
Tudo bem. Aonde exatamente você quer chegar?
-
A lugar nenhum. Aliás, aqui nas nossas condições atuais não chegaremos à parte
alguma. Estamos no mesmo barco. Futuro
incerto dias sombrios noites escuras.
-
Esquece. O que importa é o amor. Confesso sem medo de errar. Estou amando. Ela
idem. Não conta, pois, a nossa diferença de idade.
-
Quando Samanta chegou aqui, me lembro como se fosse hoje. Ainda uma menina. Vinte e dois anos. Brigara
com o namorado, os dois se desentenderam... e então...
-
De tudo isso eu sei. Ela me contou.
Repetindo o já dito. Não me incomoda a idade que ela tenha. Como você
mesmo disse, “nós dois falamos pelos olhos”.
O
perguntante não dava tréguas. Queria infernizar.
-
Cá entre nós. Não me leve a mal. Ela tem idade para ser sua filha ou pior,
neta.
-
O quê?
-
Brincadeirinha. Escapou sem querer.
O
amigo para não sair do sério imitava zombando da cara do chato. Além de vazio
de ideias, a figura era um fatigante maçador. Para rebater a altura, a essas
tiradas sem graça, mudava a voz de propósito para dar mais ênfase à observação
recebida:
-
“Brincadeirinha. Escapou sem querer”.
Ao
que o mala sem alça respondia, tentando emendar a sua estupidez.
-
Desejo sorte. Afinal, todos nós temos direito a felicidade. O amor é eterno.
-
E você? Não se abriu para o amor?
-
Claro que me abri.
-
Temos umas gracinhas aqui em volta de nós. É só escolher. Gina, Luana, Vera
Lúcia, a dona do salão, a Cacilda da padaria...
-
Eu sei que temos. Foi daqui mesmo que escolhi. Todavia, depois da Lindinha...
não quero mais saber de me apaixonar.
-
O que houve com a Lindinha? Não conheci!
-
Partiu uns dias antes de você se mudar de mala e cuia para cá. Foi meu grande
amor, depois da minha falecida Amância com quem estive casado mais de quarenta
anos. Conheci a Lindinha aqui na entrada do condomínio, e como aconteceu com
você, amor à primeira trocada de olhares. Fiquei com os quatro pneus furados.
-
Uau! E o que aconteceu? Você nunca comentou sobre esse particular.
-
Verdade, meu amigo. Vivemos uma paixão muito forte, prometia, inclusive, ser
imorredoura.
-
Prometia?
-
Sim. Apesar da minha idade avançada... ela mais nova que eu vinte e oito
anos... chegou a engravidar... imagine... de repente...
-
Continue...
O
cricri, nesse momento, começou a chorar como uma criança que perdera um
presente valioso. Naquele sujeito sem nexo e irritante, vulgar e calombo,
surgiu um semblante amargurado. Dois olhos entristecidos sobressaíram em seu
rosto consternado. No lugar do pegajoso
que se abria sempre em deboches e pilhérias, uma mágoa profunda, fechada, doida
e inconsequente, se altaneirou:
-
Vamos, meu amigo. Se abra. Sou seu amigo...
-
O tempo dela... sabe essa história dos cinco anos? Pois então! A coisa venceu.
Ela não tinha, como nós, a perpétua. A administração ligou. Dias depois os irmãos, juntamente com os
pais, vieram aqui e transferiram os restos mortais dela para outro
cemitério.
Título
e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Da Bienal do
Livro, São Paulo, Capital. 7-8-2018
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