sexta-feira, 14 de setembro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] A revolta do poste

Aparecido Raimundo de Souza

CHEGA, BASTA. POREI um ponto final. Cansei de ficar aqui parado, nesta calçada, ereto, feito um varapau, com os braços cheios de fios e, ainda por cima, segurando uma lâmpada irritante e um baita transformador chato prá burro, pesado com força, e “mais mau”, perto do coração. Não pensem que por eu ser um simples poste de luz fincado numa rua de bairro de periferia, não tenha coração.

Pois agora já sabem, eu tenho. E ele bate tanto quanto esse que vocês carregam dentro do peito. Embora seja um ser aparentemente parado, inanimado ou sem ânimo para o cotidiano da vida, não obstante feito de cimento e areia é preciso que todos entendam, dou vida às coisas. Como os momentos inesquecíveis, levo alegria às famílias e felicidade aos lares.

Não fosse por mim, a luz elétrica jamais chegaria até sua morada. Quando uma pessoa aperta o interruptor, ou liga a tevê, o rádio, o aparelho de som, ou o chuveiro quente, ou tudo isso junto, de uma vez só, lá estou, ativo, enérgico, incansável, apressurado, levando o conforto, o refrigério, o préstimo, a comodidade e o bem-estar. Para vocês terem noção, a luminária que sustento disse estar de saco cheio de tanto brigar com uma das braçadeiras que suporta o bocal da florescente.

Otário, como sempre, tentando apaziguar os ânimos, me meti na contenda sem ser convidado.  “Elas (as braçadeiras) não têm sentimento – berrou o írico lampadário de iluminação pública completamente fora de si”. Ao que o bocal asseverou, atarantado: “Por ajudar a fazer clara a escuridão, se acha melhor que todo mundo... pois sim!”.

Voltando aos meus infortúnios, acreditem amigos, não é fácil. Dias atrás, enfeitaram meu corpo com papeis de “Procura-se” com a foto de um sujeito com feições manejadas. Manejadas, de Mané mesmo.
Praia Grande, SP
Segundo o texto (logo abaixo da 3X4, em preto e branco), dava conta que o infeliz era “pancadão das ideias”. Sumira de casa e a família oferecia uma recompensa a quem desse notícias de seu paradeiro. As desmoralizações e as sacanagens não pararam ai. Virei palhaço. Só me falta, hoje, posso afirmar sem medo de errar, para ser um perfeito girafales, ter ao alcance, um picadeiro a disposição e um Patati&Patatá para o contracenamento ser completo. Além desses anúncios na base do zero oitocentos, os moradores seguem pregando em meus costados cartazes com vendas de móveis e utensílios usados, putas à procura de programas, não ficam de fora, como também criaturas barganhando discos de vinil e CDs dos tempos do ronca.

Um filho da mãe ladeado a mim encostou um pneu velho na minha bunda com a inscrição “boraxeiro logu ale ha seim metrus”. Não ganho (e o Céu é testemunha), nem um centavo para o café. Pior, nessa divina comédia humana, não é aguentar Balzac ou as Paralelas de Belchior. Chato até dizer chega é suportar calado, sem dizer um “ai”, os insuportáveis cachorros e as cadelas que se achegam à minha beira (vindos de outras ruelas e becos) e com a maior naturalidade, vê-los levantarem as patas e mijarem em mim (pasmem, em mim!) sem a menor cerimônia ou constrangimento.

Quando não, partirem para fazer coisa pior. Aí (ao optarem por essa coisa pior) é dose para elefante. Estou pensando, seriamente, junto com outros colegas que comungam de igual infelicidade, fundar o Sindicato dos Postes e, de roldão, o Serviço de Proteção aos Cilindros Verticais Desamparados.

Semana passada, quando me preparava para um cochilo, após o almoço, um fusquinha com quatro elementos dentro veio para cima da calçada, a toda velocidade. O vagabundo, ao volante, perdeu o controle da direção ao passar pelo quebra mola. Pra lá de Bagdá, e não contente em atropelar uma velhinha que seguia em direção ao supermercado, pimba, deu uma baita cacetada justo na minha base. E mais: o desgraçado acertou, em cheio, meu calo de estimação. Fiquei torto, meio curvo, irregular, de través, quase fui ao chão. Faltou um tantinho assim... 

Todavia, como sou feito de material de primeira, aguentei firme o baque, a porrada. Poste que é poste com P maiúsculo, não perde a pose, não dá o braço a torcer, não chora, nem entrega os pontos. Tenho, em minhas veias, sangue de concreto de primeira. Mamãe se aposentou pela prefeitura, com mais de noventa anos. Sem falar que (igual a ela, a mamãe), não atraio insetos perniciosos. Se fosse de estirpe ruim, com o decorrer do tempo esses asquerosos apareceriam para corroerem minhas entranhas.

Suporto sem bronquear, climas extremos e estou sempre em forma, ainda que as condições meteorológicas não sejam favoráveis. O que mais me deixa pê da vida é, sem dúvida alguma, a descamaradagem, a desolidariedade dos parentes consanguineados próximos.

Quando o fusca me atropelou, não veio, em meu socorro, nenhum irmão, nenhum tio, para saber se eu estava bem de saúde. Do mesmo modo, não deu o ar da graça, viva alma, sequer um morador imediato saiu no portão ou na janela para me acudir, ou para me subsidiar algum tipo de auxílio. Para me levar ao hospital, para me dar assistência. Não é trágico?

Mais que isso, é humilhante, e vexatório. Só quem está no meu lugar, parado dia e noite, vinte e quatro horas por dia, enfrentando as intempéries sem comer, beber, descansar, dar uma namoradinha (estou gamado numa linda Caixa de Barramento, duas casas abaixo) é que pode avaliar em justa precisão como é ser um objeto, ou melhor, uma coisa que todo mundo precisa para viver, mas que não lhe dá a mínima importância.

Agora, além de tudo, preciso aturar as piadinhas. Vejam se isso não é de deixar qualquer um com os nervos em frangalhos. Definiram minha pessoa como “um troço grande e cilíndrico de concreto que fica muito tempo no mesmo lugar e, de repente, pula na frente de um carro dirigido por uma mulher”. Posso com isso? Engraçado: as pessoas são estranhas – e, quando falo pessoas -, generalizo todas. Elas não entendem, não sabem que tudo existe por uma razão pré-estabelecida no universo de todas as coisas. Assim como há sempre um dia atrás do outro, sei que o meu em breve chegará.

A minha hora de ser feliz alegre e saltitante, florescerá na minha beira. E então, quando eu menos esperar... meu Pai Eterno, como sonho com esses momentos! Nesses benfazejos, viajo como dizem os humanos, uns aos outros, “na maionese”.  Ah! Deixa ó Pai dos Postes eu jornadear na manteiga das minhas quimeras, defluir como Ícaro em busca do voo perfeito.

Como o Superboy, imaginar novos horizontes num abrir e fechar dos olhos.  Esquecer, por algum tempo, minha triste vida de poste sofrido, repleto de cabos elétricos solitário, oco, vazio, sem ninguém (tirando, logicamente, a esfuziante Caixa de Barramento a qual alimento com energia dobrada), mercê unicamente de uma matilha de vira-latas desatinados, quebrantando seus instintos mijais em meus pés, deixando, em meus sapatos enterrados na calçada, o intrépido cheiro acre dos alívios não merecidos de bexigas e colhões estufados do mais puro pipi. Concordam comigo? Ainda bem que tenho alguns amigos. Poucos, mas sinceros. Isso é o que faz toda a diferença.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do Aeroporto Internacional Santa Genoveva, Goiânia, Goiás. 14-9-2018

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