Alberto Gonçalves
Os poucos que assistem à farsa com o horror
que esta merece aproveitam para se despedir do melhor país do mundo a fingir
que não é uma vergonha, nas mãos de criaturas que não têm nenhuma.
Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa |
Por mera curiosidade, decidi
consultar os “rankings” internacionais que quantificam esses factos. Comecei
pelo “ranking” da Esperança. Não encontrei. E não encontrei qualquer dos
“rankings” restantes, mesmo após buscas demoradas no Google e buscas breves em
páginas que o pudor me impede de divulgar. Em lado algum consegui verificar a
superioridade, ou a inferioridade, dos docentes daqui sobre os suíços ou os
porto-riquenhos em matéria de Esperança, Transmissão de Esperança, Contemplação
do Futuro ou Disponibilidade. As únicas classificações que encontrei, por
exemplo as do teste PISA, colocam-nos em lugar mediano entre os países da OCDE,
o que, a confirmar-se o elevado gabarito de quem ensina, confirmaria também a
elevada estupidez de quem aprende.
Por sorte, ou azar, não se
confirma nada. E se a ausência de fundamento não significa que o desabafo do
prof. Marcelo seja mentira, indica fortemente que não é verdade. O prof.
Marcelo disse o que disse como poderia ter dito que os taxistas portugueses são
dos melhores do mundo (porque, eu sei lá, dão uma corrida às dificuldades). Ou
que os picheleiros portugueses são dos melhores do mundo (talvez porque
canalizam valências transversais). Ou que os pasteleiros portugueses são dos
melhores do mundo (porque fermentam os sonhos). Exagero? Nem tanto. Na
quarta-feira, em crônica que desgraçadamente só li depois de ter amanhado esta,
o Miguel Pinheiro lembrou que o prof. Marcelo proclamara os militares
portugueses “os melhores do mundo”, aquele dr. Vitorino “um dos melhores do
mundo”, os trabalhadores do desporto, da ciência, da educação, da literatura e
das empresas “os melhores do mundo”, e que a “pátria” em geral é “a melhor do
mundo”.
Esta série de atoardas não
destoa do paleio de café, não por acaso o melhor café do mundo. Na semana
passada, falei da propensão indígena para a hipérbole patriótica. Foi,
imagine-se, a propósito de um árbitro de tênis. Poderia ter sido a propósito
dos vinhos, dos polícias, dos ralis, dos rojões, dos trombonistas, dos
cardiologistas ou dos cantoneiros. Na insuspeita opinião dos portugueses, os
portugueses são os melhores do mundo no que quer que se disponham a fazer ou a
tocar. Enquanto conversa de simplórios, o exercício é apenas ridículo. Quando
reproduzido até aos confins do insuportável pelo chefe de Estado, é mais do que
ridículo, é a prova da baixíssima conta em que o chefe de Estado leva os seus
eleitores. Se se elogia toda a gente, não se revela a mínima consideração por
ninguém, e o prof. Marcelo não se limita a achar que o “povo” engole
semelhantes patranhas: sobretudo convenceu-se, se calhar com razão, de que o
povo o aprecia em função da dimensão das patranhas. Embora esteja por apurar
para que serve um presidente da República, devia ser óbvio que não serve para
isto.
E “isto” não é o pior. Apesar
de embaraçosa e primária, a obsessão de um estadista com a predileção das
massas não seria uma calamidade caso se esgotasse nisso, ou na ocasional
mudança pública de cuecas. O problema é que a sujeição das pessoas a “afetos” demagógicos
não é um teste à popularidade do prof. Marcelo, é um teste à credulidade das
pessoas. Ou uma forma de aferir os enxovalhos que são capazes de tolerar sem um
pio.
Pelos vistos, apurou-se que
toleram imenso. Inclusive toleram – vão ver que sim – a golpeada que, na
sequência de malabarismos reles, enxotou Joana Marques Vidal e concluiu a
tomada do regime. Não vale a pena desperdiçar muitos adjetivos a descrever o
processo. Basta perceber que se aboliu o último vestígio de resistência às
gangues que agora reinam em paz. O penúltimo, aliás, chamava-se Pedro Passos
Coelho e agradeceu no Observador o desempenho da procuradora-geral. É um gesto
digno, e uma implícita admissão de derrota do autor do texto e da respectiva
destinatária. Não é uma surpresa, dada a desigualdade do combate. Porém, havia
um combate. Hoje, há o silêncio das épocas tristes. E, se quisermos imitar os
professores e olhar o futuro, o silêncio prolonga-se.
Por coincidência, ironia ou
requinte de gozo, o prof. Marcelo aproveitou a data fúnebre para se despedir de
não sei o quê na universidade. Os poucos que assistem à farsa com o horror que
esta merece aproveitam para se despedir do melhor país do mundo a fingir que
não é uma vergonha, nas mãos de criaturas que não têm nenhuma.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
22-9-2018
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