terça-feira, 13 de novembro de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Furna da onça

Aparecido Raimundo de Souza

BIGORNINHO JÚNIOR CHEGOU DA ESCOLA jogou, de qualquer jeito, os cadernos em cima do aparelho de som e se dirigiu ao homem que lia um jornal sentado diante da televisão ligada falando sozinha para as paredes. Dividia os pés ensapatados e sujos de terra com um gato preto que dormia tranquilamente recostado sobre uma almofada vermelha.
- Pai, o senhor poderia me explicar qual é a função do aparelho reprodutor do homem e da mulher?

Bigórnio ficou furioso. O filho vinha da rua feito um furacão e, da maneira mais malcriada possível, interrompia a sua leitura, como se isso fosse à coisa mais natural do mundo. 
- Eu? Logo eu?
- Sim Pai. Tem mais alguém aqui?
- Tirando o gato, a televisão.
- Ela não é gente, Pai. Nem o Berlioz.
- Mas fala. Não está ouvindo?

O guri pegou o controle remoto e acionou o botãozinho que indicava desligar. Proft.
- Pronto.  
- Falta o bichano.
- Ele não está nem aí.
- Sem educação. Estava assistindo...
- Deixa de conversa fiada, Pai. O senhor lia o jornal.
- Está me chamando de mentiroso?
- Claro que não, mas é verdade!
- O quê? - Seu sem vergonha filho de uma égua. Onde aprendeu tanta falta de educação e desrespeito aos mais velhos?
- Com o senhor.
- Não me tire do sério, seu pirralho, ou te meto a mão no meio da fuça. Vá se livrar desse uniforme ridículo.

O garoto parecia resoluto na sua determinação de não arredar da frente do pai.
- Primeiro me fale dos tais aparelhos.
- Aparelhos? Que aparelhos?
- Os reprodutores do homem e da mulher.
- Para que quer saber?
- Preciso apresentar um trabalho escrito em forma de redação até depois de amanhã.
- Vá atrás de seus amiguinhos Tiago e Huguinho.
- Estão de férias Pai. Viajaram.
- Bem feito. Você não estuda! Só quer saber de jogar bola. Por isso vive de recuperação. Tem mais é que puxar carroça, como eu. A propósito: no seu aniversário vou lhe dar um burro de presente.
- Só estou seguindo seu caminho.

Bigórnio passou a mão na almofada onde descansava os pés e a atirou, com gato e tudo em direção ao filho. Por pouco. Passou raspando. O quase estava do lado do moleque. Quem não gostou muito da ideia, certamente o pobre do animal. Arrancado do sono, de maneira brutal, saltou apavorado sumindo em direção à cozinha.
- Filho da mãe. É isso que aprende naquela droga de escola?
- O que o senhor espera de um “futuro carroceiro?”.

Foi à gota d’água que faltava para transbordar o copo. O sujeito, um baita grandalhão sanguíneo, o rosto queimado, tostado pelo sol escaldante, se assemelhava a figura de um leão enjaulado, se moveu veloz, como se, de repente, a porta da grade fosse aberta por alguém invisível.  Levantou de um salto, bufando, possesso. Amassou o jornal, pisou com força no que restou dele, e saiu à cata do respondão. Bigorninho Junior, por sua vez, não perdeu tempo. Nem podia.

Deu linha à pipa. Berrando feito um adoidado, Bigórnio, cheio de razão e – emputecido com o guri – partiu em seu encalço. Arrancou, nessa empreitada, o cinto da calça.
- Vou te mostrar com quantos paus se faz uma jangada.
- Depende do tamanho da embarcação Papito.
- Venha cá, seu filho de uma vagabunda desnaturada. E não me chame de papito. Odeio esta palavra.

Claro que Bigorninho Junior não obedeceu à ordem. Era alguma besta? Com o pai em seus calcanhares, teve uma ideia brilhante. Danou a circular em derredor de uma mesa de jantar enorme, acompanhada de seis pesadas cadeiras que ficava centrada, bem no meio da sala. Seus movimentos se igualavam a elásticos.

Se conseguisse cansar o pai -, por sinal tinha problemas de coração -, logo ele desistiria daquela peleja estapafúrdica. Assim pensando, não parou. Uma volta, duas, cinco, oito, dez...
- Pare desgraçado. Mais uns passos e boto pra fora os bofes!
- Só se o senhor largar o cinto.
- Cinto? - Que cinto? Não estou vendo nenhum cinto.
- Engraçadinho. Esse que está em suas mãos.
- Ah, é mesmo. Como foi que chegou até elas?

Entrou, em cena, uma senhora de idade bastante avançada, os cabelos brancos e ralinhos, caminhando lentamente apoiada numa bengala. Na mão esquerda, a altura do coração, aninhado, sobressaia um assustado gato preto (Berlioz, o bichano que voara a poucos minutos passados), ainda não totalmente refeito dos rescaldos do sono enquanto tirava um cochilo em sua almofada vermelha preferida.
- Posso saber o que é que está acontecendo por aqui?
O menino completou a última volta e disparou em direção à velhota. Abraçou-se carinhosamente a ela. A sua tábua de salvação. Apontou dedo em riste para o pai encolerizado. O cara suava em bicas. Dava a impressão de que teria um piripaque.
- Vovó Candoca, o Papai quer me bater de cinto de fivela. 

A oitentona fuzilou Bigórnio por debaixo de um par de lentes grossas e antigas.
- Que diabo é isto, Bi?
- Estou tentando, ensinar boas maneiras a esta “coisa” que a senhora estragou criando a seu jeito.
- Esta coisa aqui Bi, é meu neto. Seu filho. Seu filho, cabeça de bagre. Se Chimarronzina minha querida e amada filha, que Deus a tenha, estivesse viva...
- Mas não está. Nesta altura do campeonato, deve consumir sua existência abraçada ao capeta. Vem cá, seu merda. Solta da barra de sua avó. Seu maricas...  veado.

- Maricas e veado é você seu cachorro vira-lata. Que implicância com o pobrezinho. Tome juízo, seu idiota.  Por que não volta lá pra sua carroça? Não tem nenhum frete para ser concretizado? Ainda a pouco, me ligou o Fuzil, do mercadinho. Estava lhe procurando. “Cadê o panaca do seu genro?”.    
Virando o rosto para o pequeno, contemplou seu semblante com meiga e infinita ternura.
- O que deixou seu pai panaca tão encolerizado?
- Eu queria que ele me ajudasse a fazer um trabalho para entregar na escola.

- Ta vendo só seu palerma. Custava orientar o guri? Ao invés de se dedicar ao infeliz prefere maltratá-lo. Boçal. Imprestável. Venha com a vovó. Vamos dar um jeito nesta questão agora mesmo. E quanto a você, vá até lá na cozinha e dê um pouco de ração e renove a água para o Berlioz.  Nada de fazer sacanagem com ele. Olhe pra carinha dele... tadinho...
Bigórnio, de má vontade, passou a mão no gato e continuou soltando farpas enquanto rumava para a área de serviço.
- Se esse menino crescer assim, “aviadado” pela senhora, vai virar uma linda mocinha. Bilu bilu...  Juaninha quer uma sainha cor de rosa? Ou prefere que a comadre aqui lhe compre uma calcinha de renda lilás?!
- Não ligue para seu pai, Bigorninho. É um borra botas. Maldita hora que minha filha deu... esquece. Venha comigo até o quarto.

                                       ***

- O que realmente deseja saber, meu filho?
- Vovó Candoca, preciso escrever uma redação sobre o que é e para que servem os aparelhos reprodutores do macho e da fêmea.
A senhora deu alguns passos capengas até uma pequena biblioteca que ladeava sua cama. Pegou um livro de capa cinza e o abriu sobre a cocha azul marinho. Sentou e sinalizou para que o piá fizesse o mesmo. Folheou algumas páginas até topar com o procurado.
- Aqui, achei. Está vendo?
Em meio à brochura, sobressaia a figura de um homem num dos lados da página e, do outro, uma mulher. Ambos pelados. Minúsculas letrinhas com setinhas amarelas e alaranjadas explicavam, com riquezas de detalhes, cada função específica no corpo humano.

Com o indicador, a avó foi deslizando por cima do papel amarelento até se deter num ponto específico.
- Olhe meu filho. Ponha reparo. Isto aqui é uma varinha mágica. Não é linda?
O pequeno se ateve ao retrato e caiu na gargalhada. 
- Isso ai é um pinto, vovó Candoca!
- Eu disse varinha mágica. Que coisa feia chamar isto de pinto... pinto é o filhotinho da galinha...
O dedo da anciã passou para a folha ao lado.
- E esta outra, espie com bastante cuidado, é a cartola.
- A senhora quer dizer a “buce...”.

- Cartola, filho. Cartola... E não é bu é bo...

Bigorninho Junior viajava na maionese, os olhinhos cheios de interrogações. Uma fascinação instantânea lhe dominava os sentidos.
- Entenda a matemática, meu querido. - Quando a varinha mágica entra em contato com a cartola – continuou a antiga na sua explicação comparativa – acontece uma mágica divina. Você mesmo já viu isto no circo, lembra?
- Eu sei vovó Candoca, eu sei. Mas da tal cartola saiam flores e pombos...
- E qual é a diferença?
- Ora bolas, vovó. Se este pinto aqui entrar nesta “buce...”.
- Bigorninho, preste atenção. Ai, ai, ai. Sem palavrões. Você é um menino educado, esperto e inteligente. O xodó da vovó. Raciocine. Se os dois órgãos aqui se juntarem – o macho e a fêmea – como eu disse, a varinha mágica e a cartola...

- Entendi vovó Candoca.
- Então, meu lindo. Se o aparelho reprodutor masculino do homem, repetindo, a varinha mágica, entrar em contato com o aparelho reprodutor feminino da mulher, a cartola... assimilou o que  vovó Candoca quis dizer?
- Sim, vovó. Entendi. Agora eu saberei explicar, na minha redação pra professora e para meus colegas, se for chamado à frente da classe, o que é, para que serve e o que acontecerá... 
- Então diga pra sua vovozinha. Faz de conta que sou a sua professora. Ou melhor, eu sou seus coleguinhas sentados.  Você lá na frente, lindo, charmoso. Continue. A varinha mágica entrou na cartolinha e...
Bigorninho não deixou por menos. Certeiro como uma flecha em direção ao alvo sucintou magistralmente a sua explanação:
- O pinto, vovó Candoca... desculpe. A varinha mágica entrará fundo, com tudo o que tem direito e gozará dentro da cartolinha. Ao invés de pombos e flores, nove meses depois, “sairá da buce...” desculpe de novo, vovó Candoca. Nove meses depois, sairá da cartolinha, um montão de bebês.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Vila Velha, Espírito Santo. 13-11-2018

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