quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Emmanuel Macron... e um príncipe mongol

Emmanuel Macron, foto: EPA
Paulo Tunhas

Não é de estranhar que surjam por aí muitas vozes, que não se limitam às dos maluquinhos do costume, a decretarem que, em democracia, o combate ao aquecimento global nunca terá sucesso.

Às vezes, e contrariamente ao que se esperaria, há uma estranha superficialidade nas ideias obsessivas, uma espécie de falta de convicção na crença que se detecta aqui e ali. Parece contraditório? Parece, mas talvez no fundo não seja. Tomemos o exemplo de duas ideias obsessivas muito comuns hoje em dia:

o planeta está a ser destruído por um aquecimento global motivado por razões exclusivamente antropogénicas;

e o fascismo começa a mostrar a sua feia cara um pouco por todo o lado, tomando formas que cada vez mais lembram os anos trinta do século passado. Deve ser difícil encontrar ideias que possam competir com estas em matéria de unanimidade mediática e que se apresentem em tão elevado grau como verdades indiscutíveis.

Não vou aqui obviamente aqui esmiuçar essas crenças, que até podem ser ambas verdadeiras. Limito-me a constatar que elas são obsessivas: não saem da cabeça de muita gente e oferecem, cada uma à sua maneira, um quadro geral para cada um dizer o que diz. Sobretudo, permitem falar com entusiasmo, um entusiasmo que não aparenta por um só momento duvidar da sua própria justeza e que julga ver nelas a explicação exaustiva e coerentíssima de todos os males do mundo, presentes e a vir.

Uma figura, de resto, reúne em si o objeto de detestação das duas crenças: Donald Trump, é claro. E só Deus sabe como uma imagem dá jeito para reforçar as crenças. Põe carne sobre os ossos, dá-lhes vida, fá-las presentes para lá de qualquer dúvida que possa surgir, torna-as aparentemente evidentes. Sob esse ponto de vista, pelo menos, há que admitir que Trump foi uma generosa dádiva para o mundo. Leiam um jornal, vejam uma televisão, ouçam rádio – e digam-me se não é assim.

E no entanto… O que surpreende com estas ideias obsessivas admiravelmente coerentes e de uma constância irrepreensível são os seus momentos de fragilidade. Não é que o entusiasmo alguma vez soçobre, que a intensidade da crença perca ímpeto. Isso não. São antes pequenos detalhes que indicam a superficialidade da crença, isto é, que, apesar da sua formidável energia, não estamos na presença de uma verdadeira convicção, fundada no conhecimento das razões que nos fazem acreditar.

Pensemos no exemplo do fascismo. Lembram-se do último fascista universal? Bolsonaro. Era fascista até mais não, com tudo o que era preciso e mais alguma coisa. Semanas e semanas, vinha aí o fim do mundo, ou, melhor, vinha aí o início de um mundo horrível em que todos teríamos de viver. Capas de jornais e jornalistas televisivos não tinham um átomo de dúvida no capítulo. E o que, de repente, aconteceu? Com a possível exceção de Alexandra Lucas Coelho, um espesso manto de silêncio tombou sobre Bolsonaro. Dir-se-ia que deixou de existir. A espessura da crença no advento universal do fascismo não se volatilizou, é claro, mas a sua figura recentemente mais emblemática parece ter-se dissolvido no esquecimento. Como não detectar aqui uma fragilidade, produto natural da superficialidade? Se Bolsonaro era enfaticamente o fascismo, não mereceria a nossa atenção vigilante e continuada? Aparentemente, sim. Mas, na prática, não. Outras figuras se arranjarão. Bolsonaro já cumpriu o seu papel.

E que dizer do último episódio relativo às alterações climáticas? O presidente Macron, supremo paladino das mais rigorosas medidas contra as causas humanas do aquecimento global, decidiu, em toda a coerência, aumentar o imposto sobre os combustíveis, com a mesma energia (e menos prudência) com que Marcelo, mais modesto, combate os eucaliptos. Logo um extenso movimento popular, com imenso apoio entre os franceses, pôs Paris e outras cidades a ferro e fogo.

Os franceses, é verdade, mantêm uma velha tradição de gosto pela confrontação física nas manifestações, que seria injusto reduzir aos chamados jovens das cités, os “territórios perdidos da República”.

Que fez então Macron, seguindo uma também velha tradição francesa? Suspendeu, é claro, o aumento de impostos. Esses impostos, recordo, que eram imprescindíveis para combater as alterações climáticas (que, diga-se de passagem, boa parte dos franceses que se manifestaram ou apoiaram os “coletes amarelos” devem declarar o principal flagelo dos nossos tempos). Mais uma vez, não é que a ideia obsessiva tenha perdido o seu ímpeto. Apenas que encontrou razoáveis motivos para uma excepção.

Como não ver, na abertura desta excepção, o sinal de uma fragilidade da crença? Se fosse em ditadura, as crenças obviamente seriam mais estáveis. Não é de estranhar, por isso, que surjam por aí muitas vozes, que não se limitam às dos maluquinhos do costume, a decretarem que, em democracia, o combate ao aquecimento global nunca terá sucesso. E que o exemplo a seguir é o da China, o tal país que tem (não é de hoje, verdade seja dita) um pequeno problema com os direitos humanos. Viva a ditadura esclarecida!

Por acaso, ando a ler um livro que se tornou célebre, em parte por causa de um ensaio de Freud: as “Memórias de um doente dos nervos”, que o juiz alemão Daniel Paul Schreber publicou em 1903. É a coisa mais parecida que conheço com o “Diário de um louco” de Gogol – em versão hard, naturalmente. Schreber esteve três vezes internado num hospital psiquiátrico. Morreu lá na última, em 1911.

As “Memórias” relatam a sua vida mental durante a segunda estada e são, nesse género muito singular, uma obra-prima. Para resumir muito, Schreber estava convencido que Deus, com o qual mantinha relações ambivalentes, o tinha escolhido para dar origem a uma nova humanidade, já que a atual se encontrava destinada a desaparecer em breve (Schreber refere-se, a este propósito, à teoria das catástrofes periódicas de Cuvier). Tal processo implicava, no entanto, a sua emasculação, à qual se seguiria a sua fecundação pelos raios divinos. Acompanhando a tese principal há um sem número de considerações que a complementam, e todas elas apresentam uma extraordinária coerência.

Como para qualquer paranoico, transportado por uma ideia obsessiva, tudo tem obrigatoriamente de fazer sentido. E, para Schreber, tudo faz sentido. Ao ponto de se permitir “dúvidas científicas”, logo refutadas, sobre a natureza das suas experiências de contato com Deus e com outros habitantes do mundo dos espíritos. E a busca da coerência, repito, é exemplar.

Apenas um entre mil exemplos. A certa altura, referindo-se à transmigração das almas, enumera algumas das suas encarnações futuras: uma mulher hiperbórea, um noviço jesuíta em Ossegg, um burgomestre de Klattau, uma rapariga alsaciana que tem de defender a sua honra contra um oficial francês vitorioso e, finalmente, um príncipe mongol. Com pena, não entro nos detalhes, mas cada uma destas encarnações futuras apresenta, aos olhos de Schreber, uma coerência perfeita com todos os detalhes da sua cosmologia. A coerência no delírio, nunca é demais repeti-lo, é avassaladora. Não há, exatamente, fragilidades.

Se cito o infeliz juiz Schreber, não é para aconselhar a sua coerência sem falhas, a ausência de fragilidade teórica do seu sistema delirante, aos obsessivos atuais. Nem sequer para sugerir uma hipotética semelhança entre o Professor Fleshsig, o director do hospício no qual se encontrava internado e que, aos seus olhos, conjurava a sua perda, e Donald Trump. Muito pelo contrário.

As tais fragilidades parecem-me eminentemente louváveis. São falhas que, mesmo que não se reconheçam como tal, e sob a carapaça de uma crença imune a qualquer objeção, revelam dúvidas. E quem se pode queixar disso? A superficialidade é porventura um defeito, mas um defeito que pode ter algumas consequências louváveis.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 6-12-2018
Marcações de Texto: JP

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