quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O urinol de António Costa

Sérgio Barreto Costa


Ao contrário dos nazis, que, inspirados numa peça de teatro do dramaturgo Hanns Johst, sacavam da pistola quando ouviam a palavra Cultura, eu gostaria apenas, em iguais circunstâncias, de sacar do polígrafo. Não é que a mentira, democrática como é, não atinja também outras áreas da governação, mas nesta em particular, fossem os atuais responsáveis políticos da família do Pinóquio, e já teriam caído para a frente com o peso do nariz.

Em 2015, último ano em que os rústicos liderados por Passos Coelho trataram do assunto, o orçamento destinado à cultura era de uns míseros 219 milhões de euros; em 2016, afastados os bárbaros dos salões da civilização, logo o orçamento passou para uns generosos… 179 milhões!

À primeira vista parece uma diminuição, mas as “primeiras vistas” são para saloios e António Costa é um príncipe florentino. Num passe de mágica pegou na RTP e nos 244 milhões que lhe estavam destinados, e toca a metê-los no Ministério da Cultura, elevando o orçamento global, em microssegundos, para uns espetaculares 423 milhões de euros.

Desde o dia em que Marcel Duchamp comprou um vulgar urinol numa loja de Nova Iorque e o rebatizou como obra de arte que ninguém fazia cultura de uma forma tão rápida, o que diz bem da qualidade do artista. É também provável que, sem contar com Alves dos Reis, seja o português que mais dinheiro conseguiu criar a partir do nada, o que só reforça a conclusão anterior.

É, pois, perfeitamente natural que, cumprido com sucesso o primeiro truque da multiplicação do orçamento, António Costa avance com naturalidade para novos ilusionismos. Em Guadalajara, questionado sobre o famoso 1% do PIB que é reivindicado pelo PCP, pelo Bloco de Esquerda e pelos agentes culturais, puxou da “transversalidade do que são as verbas dedicadas à cultura” para garantir que, em 2019, o assunto ficaria resolvido. Se fosse apenas pelo PCP e pelo Bloco, que aprovam os atuais orçamentos na Assembleia da República e sabem muito bem o que se passa, não valia a pena gastar o meu latim. Mas pelos agentes culturais eu sou capaz de tudo, incluindo traduções de frases artísticas.

A invocada “transversalidade das verbas”, prova viva de um investimento extraordinário na iluminação do povo, significa que o primeiro-ministro se prepara para pescar em todos os ministérios as rubricas que estejam de alguma forma relacionadas com a cultura e fazer com elas uma bonita conta de somar. O ensino artístico (Ministério da Educação) e o Instituto Camões (Ministério dos Negócios Estrangeiros) são dois bons candidatos a inaugurar o processo, mas com o tempo e com a adopção do conceito alargado de cultura utilizado pelos antropólogos, não será de estranhar que o orçamento do sector atinja em breve os vinte ou trinta por cento do PIB. Agostinho da Silva, por exemplo, dizia que a cultura era a soma de três S – sustento, saber e saúde, pelo que só nesta frase temos uma grande margem de progressão.

E há também todo aquele conjunto de características definidoras de um povo e que pode ser muito útil na reclassificação financeira em curso. Para não me acusarem de má vontade, até deixo umas sugestões: se a fuga ao fisco faz parte da cultura dos portugueses, o salário dos inspetores das finanças deverá ser contabilizado no orçamento de Graça Fonseca; e se estacionar em cima do passeio pode ter o mesmo enquadramento antropológico, o orçamento da EMEL deverá ter o mesmo destino.

Claro que tudo isto só tem lógica num cenário de acumulação, nunca de substituição: o ensino artístico, por exemplo, será uma verba da cultura nos debates relacionados com o ministério sediado no Palácio da Ajuda; quando o tema for a educação, volta para o ministério de Tiago Brandão Rodrigues. Com uma boa dose de agilidade, o mesmo dinheiro poderá servir como prova da paixão governativa por múltiplas e diversas áreas. Assim o permita a imaginação e a lata.

Pessoalmente, não ligo nada à famosa “questão do 1%”. É uma percentagem como outra qualquer, que serve mais de fétiche retórico do que de espelho da situação cultural de um país. No entanto, para não continuarmos a alimentar a comédia de enganos, ficam aqui os números: a verba de 2019 para a cultura, limpa do passe de mágica da RTP e da treta da “transversalidade”, representa 0,32% do Orçamento de Estado e 0,12% do PIB, nem mais nem menos.

Como já disse, não ligo nada ao 1%. Mas, como há muitos portugueses que ligam, talvez seja boa ideia não os fazer de palhaços. Apesar do circo ser, justa e naturalmente, cultura.
Título, Imagem e Texto: Sérgio Barreto Costa, Blasfémias, 5-12-2108

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