Aparecido Raimundo de Souza
A PROCISSÃO
AVANÇA RUA ACIMA, a passos vagarosos e desordenados de seus aparentes fiéis. Na verdade, cristãos que se traem, a toda
hora, pelos brilhos dos olhares vagos, permutados, entre uns e outros,
condenados, todavia, aquele encargo e a obrigação social, bem ainda, a dúvida
egocêntrica do Senhor Jesus Morto.
Lá à frente, frontispíciado, vai o sacerdote,
empertigado, concentrado na reza, “puxando o terço”, e, simultaneamente
preocupado com o sucesso do cortejo imenso atrás de si. Tudo precisa sair nos
conformes, para não manchar o bom nome e a reputação da sua humilde paróquia.
Ingênuo, ainda, e sem interesse, descansado e
alheio de tamanha responsabilidade que lhe impõem goela abaixo, dependurado às
barras da saia materna está um garotinho de oito anos. Semente se abrindo,
devagar, em meio à “tradicional família católica”, desde cedo levado pela mãe –
contra a vontade – de qualquer forma, se acostumando, ainda que aos trancos e
barrancos, ao ritual religioso.
Escuta o coro no frio e vazio, enfadonho e
repetitivo “Santa Maria Mãe de Deus...”. Segue o guri, nesse passo de
tartaruga, indeciso e inseguro, depauperado e enfraquecido quanto a sua
verdadeira posição dentro daquilo tudo.
- “Manhê...” -, Ele morreu?
- “Ave Maria cheia de graça...” – e o menino,
mais alto, se fazendo notar dentre tantos:
- “Manhê...”, Ele morreu? (indaga puxando com
força a mulher pela barra da saia...). Morreu de quê?
- Não meu lindo. Não morreu de nada. Mataram o
pobrezinho. “Santa Maria, Mãe de Deus...”. Vou acabar ficando com a bunda de
fora... pare de puxar a minha roupa...
- “Manhê...”, quem matou Ele?
- Os ateus, meu doce... agora fica bonzinho...
“Rogai por nós, pecadores...”.
- “Manhê...”.
Uma das velhinhas das Senhoras da Cruzada observa:
- Molequinho sem modos!
Um senhor de bengala, emparelhado a ela,
completa:
- Por que trazer criança em procissão?
A mocinha da ala dos jovens, deixando, por
instantes, de espiar o celular, desvia olhares pecaminosos para um rapazinho
com pinta de gala de novela, na fileira imediatamente ao lado:
- Que falta de respeito, esse engraçadinho!
E o pequeno, nem aí e sério, insiste:
- “Manhê...”, a polícia prendeu os ateus?
- Não, meu filho, fica quietinho. Em casa eu
explico...
Aparentemente concentrados nas orações e nos
cenários que se descortinavam, à medida que a aglomeração avançava, transeuntes
que iam e vinham, paravam para reverenciar a imagem do Senhor Morto. O Corpo
seguia numa espécie de andor carregado por nada mais, nada menos que seis
homens.
O garoto, intransigente na sua ingenuidade, não
dava tréguas e novamente quebrava a monotonia da concentração geral:
- “Manhê...”, Ele vai ali pro cemitério em cima
do morro?
- Não, filho, ele vai pra igreja.
- Quando a gente morre não é para o cemitério ali
em cima do morro que todo mundo leva a gente?
- Sim, meu príncipe. Com Jesus é diferente. Jesus
vai para a igreja...
- “Manhê...”, Jesus vai ficar enterrado na
igreja?
- Não, meu anjo, amanhã ele ressuscitará.
A senhora do Sagrado Coração de Jesus, de repente
olha para trás e reclama:
- Puta que pariu. Assim não é possível haver
total absorção na voz do reverendo!
Novamente a mocinha da ala dos jovens desvia a
atenção do celular e os crava na “paquera” e volta à carga:
- Oh! Que lástima...! - Esse bostinha está me
gastando...
Um cidadão mais explosivo perde as estribeiras:
- Vou acabar dando umas boas tapas nesse
“trocinho”.
O vigário, procurando se ater arrimado na oração
e ao mesmo tempo tentando desviar a atenção para o inoportuno e curioso garoto,
faz uma cara de poucos amigos. Num
primeiro momento fuzila a mãe da criança, depois mostra a língua para o sapeca,
o cenho franzido:
- “Santa Maria, Mãe de Deus...”.
- “Manhê...”, o que é ressuscitar?
- É viver de novo!
- “Manhê...”, meu tio Godofredo, seu irmão, vai
viver de novo?
- Não, filho, fica quieto...
- “Manhê...”, mas ele não morreu?
- Morreu...
- Então ele vai viver de novo?
- Só Jesus vive de novo. Ele ressuscita...
- “Manhê...”
Bem lá dos fundos, uma família, em peso, roga à
jovem mãe:
- Dona, por nossa Senhora da Santa Paciência,
tira essa criatura da procissão!
O pontífice dá uma parada básica e volta a olhar
feio. Muito feio. Chega a fazer medo. A mãe acode:
- Fica quieto, Gaspar. Em casa a gente
conversa...
Outra velhota participante das Senhoras da
Cruzada, explode:
- Capetinha intransigente!
O rapaz malandrão, com pinta de galã de novela,
querendo aparecer para a mocinha que o observava, engata uma piadinha sem
graça:
- Acho que esse guri engoliu um desses CDs
piratas que a gente compra por aí!
Alguns poucos riem, procurando o pivô da discussão.
O coro, por um breve instante, dá a impressão de morrer no ar. O prelado,
nervoso, transtornado, transfigurado na sua ira, suando frio, o semblante
amarrado, já não grita. Berra o terço:
- “Pai Nosso que estais no céu...”.
- “Manhê...”, por que só Jesus vive de novo?
- Porque Ele é Deus.
- “Manhê...”, tio Godofredo não é Deus, é?
- Cala a boca, menino – corta energicamente a
progenitora.
A velha do Sagrado Coração de Jesus resmungando
mais que rezando, desabafa, fora de si: - “Ave Maria... assim não dá... cheia
de graça... caralho... rogai por nós, pecadores...”. O ministro do Altíssimo,
descontrolado, amotinado e drástico passa a andar harmonizado à senhora,
responsável pelo engraçadinho, que, percebendo a situação caótica, cutuca o
infante fazendo com o dedo indicador colado à boca, sinal de silêncio.
O rapaz facecioso, galã de novela, volta a dar o
ar da imbecilidade e, por momentos, consegue chamar a atenção para si:
- Esse pirralho é um pequeno ‘vendetive’.
- Que isso? – inquire abobalhada, a mocinha do
celular.
- É filho de vendedor com detetive...
A galera começa a rir em descompasso, desta vez
com mais regozijo. O emissário do Senhor do Universo, irado e fulo da vida,
literalmente com as cachorras, “sai” sozinho, na oração, a esta fase
completamente perdido nas contas do terço:
- “Salve Rainha, como enche os colhões do saco do
Pai Nosso...”.
O riso fácil se solta numa velocidade espantosa.
Propaga. Passa a ser geral, a algazarra. O santo e piedoso homem, de dentro da
sua batina encara desesperado e ameaçadoramente para o responsável por aquela
mancada:
- “Manhê...”, por que todo mundo está rindo e só
o seu padre está com um “focinho” de trouxa?
A pobre mãe, corada, não sabendo onde enfiar a
vergonha, doida para sentar uns bons e merecidos tabefes nos fundilhos do piá,
de repente o agarra pelo braço, num emaranhado de dedos e contas do terço e o
arrasta, aos repelões para fora da enorme massa que forma o compacto dilúvio,
que, indiferente, segue em frente, até se perder no final da rua calma e
serena, deixando, um leve ecoar de passos descadenciados, marcados na oração do
azarado e honorífico prelado: - “Santa Maria... vá à merda... Mãe de Deus...”.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de
Janeiro. 9-4-2019
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