terça-feira, 9 de abril de 2019

[Aparecido rasga o verbo] O Menino e a procissão do Senhor Morto

Aparecido Raimundo de Souza

A PROCISSÃO AVANÇA RUA ACIMA, a passos vagarosos e desordenados de seus aparentes fiéis.  Na verdade, cristãos que se traem, a toda hora, pelos brilhos dos olhares vagos, permutados, entre uns e outros, condenados, todavia, aquele encargo e a obrigação social, bem ainda, a dúvida egocêntrica do Senhor Jesus Morto.

Lá à frente, frontispíciado, vai o sacerdote, empertigado, concentrado na reza, “puxando o terço”, e, simultaneamente preocupado com o sucesso do cortejo imenso atrás de si. Tudo precisa sair nos conformes, para não manchar o bom nome e a reputação da sua humilde paróquia.

Ingênuo, ainda, e sem interesse, descansado e alheio de tamanha responsabilidade que lhe impõem goela abaixo, dependurado às barras da saia materna está um garotinho de oito anos. Semente se abrindo, devagar, em meio à “tradicional família católica”, desde cedo levado pela mãe – contra a vontade – de qualquer forma, se acostumando, ainda que aos trancos e barrancos, ao ritual religioso.

Escuta o coro no frio e vazio, enfadonho e repetitivo “Santa Maria Mãe de Deus...”. Segue o guri, nesse passo de tartaruga, indeciso e inseguro, depauperado e enfraquecido quanto a sua verdadeira posição dentro daquilo tudo.

- “Manhê...” -, Ele morreu?
- “Ave Maria cheia de graça...” – e o menino, mais alto, se fazendo notar dentre tantos:
- “Manhê...”, Ele morreu? (indaga puxando com força a mulher pela barra da saia...). Morreu de quê?
- Não meu lindo. Não morreu de nada. Mataram o pobrezinho. “Santa Maria, Mãe de Deus...”. Vou acabar ficando com a bunda de fora... pare de puxar a minha roupa...

- “Manhê...”, quem matou Ele?
- Os ateus, meu doce... agora fica bonzinho... “Rogai por nós, pecadores...”.
- “Manhê...”.
Uma das velhinhas das Senhoras da Cruzada observa:
- Molequinho sem modos!
Um senhor de bengala, emparelhado a ela, completa:
- Por que trazer criança em procissão?

A mocinha da ala dos jovens, deixando, por instantes, de espiar o celular, desvia olhares pecaminosos para um rapazinho com pinta de gala de novela, na fileira imediatamente ao lado:
- Que falta de respeito, esse engraçadinho!
E o pequeno, nem aí e sério, insiste:
- “Manhê...”, a polícia prendeu os ateus?
- Não, meu filho, fica quietinho. Em casa eu explico...


Aparentemente concentrados nas orações e nos cenários que se descortinavam, à medida que a aglomeração avançava, transeuntes que iam e vinham, paravam para reverenciar a imagem do Senhor Morto. O Corpo seguia numa espécie de andor carregado por nada mais, nada menos que seis homens.

O garoto, intransigente na sua ingenuidade, não dava tréguas e novamente quebrava a monotonia da concentração geral:
- “Manhê...”, Ele vai ali pro cemitério em cima do morro?
- Não, filho, ele vai pra igreja.
- Quando a gente morre não é para o cemitério ali em cima do morro que todo mundo leva a gente?
- Sim, meu príncipe. Com Jesus é diferente. Jesus vai para a igreja...

- “Manhê...”, Jesus vai ficar enterrado na igreja?
- Não, meu anjo, amanhã ele ressuscitará.
A senhora do Sagrado Coração de Jesus, de repente olha para trás e reclama:
- Puta que pariu. Assim não é possível haver total absorção na voz do reverendo!

Novamente a mocinha da ala dos jovens desvia a atenção do celular e os crava na “paquera” e volta à carga:
- Oh! Que lástima...! - Esse bostinha está me gastando...
Um cidadão mais explosivo perde as estribeiras:
- Vou acabar dando umas boas tapas nesse “trocinho”.

O vigário, procurando se ater arrimado na oração e ao mesmo tempo tentando desviar a atenção para o inoportuno e curioso garoto, faz uma cara de poucos amigos.  Num primeiro momento fuzila a mãe da criança, depois mostra a língua para o sapeca, o cenho franzido:
- “Santa Maria, Mãe de Deus...”.
- “Manhê...”, o que é ressuscitar?

- É viver de novo!
- “Manhê...”, meu tio Godofredo, seu irmão, vai viver de novo?
- Não, filho, fica quieto...
- “Manhê...”, mas ele não morreu?
- Morreu...
- Então ele vai viver de novo?
- Só Jesus vive de novo. Ele ressuscita...
- “Manhê...”
Bem lá dos fundos, uma família, em peso, roga à jovem mãe:
- Dona, por nossa Senhora da Santa Paciência, tira essa criatura da procissão!

O pontífice dá uma parada básica e volta a olhar feio. Muito feio. Chega a fazer medo. A mãe acode:
- Fica quieto, Gaspar. Em casa a gente conversa...
Outra velhota participante das Senhoras da Cruzada, explode:
- Capetinha intransigente!
O rapaz malandrão, com pinta de galã de novela, querendo aparecer para a mocinha que o observava, engata uma piadinha sem graça:
- Acho que esse guri engoliu um desses CDs piratas que a gente compra por aí!


Alguns poucos riem, procurando o pivô da discussão. O coro, por um breve instante, dá a impressão de morrer no ar. O prelado, nervoso, transtornado, transfigurado na sua ira, suando frio, o semblante amarrado, já não grita. Berra o terço:
- “Pai Nosso que estais no céu...”.
- “Manhê...”, por que só Jesus vive de novo?
- Porque Ele é Deus.
- “Manhê...”, tio Godofredo não é Deus, é?
- Cala a boca, menino – corta energicamente a progenitora.

A velha do Sagrado Coração de Jesus resmungando mais que rezando, desabafa, fora de si: - “Ave Maria... assim não dá... cheia de graça... caralho... rogai por nós, pecadores...”. O ministro do Altíssimo, descontrolado, amotinado e drástico passa a andar harmonizado à senhora, responsável pelo engraçadinho, que, percebendo a situação caótica, cutuca o infante fazendo com o dedo indicador colado à boca, sinal de silêncio.

O rapaz facecioso, galã de novela, volta a dar o ar da imbecilidade e, por momentos, consegue chamar a atenção para si:
- Esse pirralho é um pequeno ‘vendetive’.
- Que isso? – inquire abobalhada, a mocinha do celular.
- É filho de vendedor com detetive...

A galera começa a rir em descompasso, desta vez com mais regozijo. O emissário do Senhor do Universo, irado e fulo da vida, literalmente com as cachorras, “sai” sozinho, na oração, a esta fase completamente perdido nas contas do terço:
- “Salve Rainha, como enche os colhões do saco do Pai Nosso...”.

O riso fácil se solta numa velocidade espantosa. Propaga. Passa a ser geral, a algazarra. O santo e piedoso homem, de dentro da sua batina encara desesperado e ameaçadoramente para o responsável por aquela mancada:
- “Manhê...”, por que todo mundo está rindo e só o seu padre está com um “focinho” de trouxa?

A pobre mãe, corada, não sabendo onde enfiar a vergonha, doida para sentar uns bons e merecidos tabefes nos fundilhos do piá, de repente o agarra pelo braço, num emaranhado de dedos e contas do terço e o arrasta, aos repelões para fora da enorme massa que forma o compacto dilúvio, que, indiferente, segue em frente, até se perder no final da rua calma e serena, deixando, um leve ecoar de passos descadenciados, marcados na oração do azarado e honorífico prelado: - “Santa Maria... vá à merda... Mãe de Deus...”.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 9-4-2019 

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