quarta-feira, 3 de abril de 2019

E se em vez dos passes, nos deixassem o dinheiro?

Rui Ramos

Os cidadãos não vão pagar os novos passes quando os carregarem, mas quando descontarem para o IRS, liquidarem o IVA das compras ou esperarem pelo comboio que circula atrasado

Foto: José Sérgio/SOL

Como é que o governo pode oferecer passes baratos, e ao mesmo tempo extinguir o défice do Estado? É muito simples: aumentando os impostos e não garantindo, por falta de investimento, o regular funcionamento dos transportes púbicos. Não é por acaso que na mesma época em que nos anunciam o milagre dos passes, continuamos a descobrir os recordes deste governo: a carga fiscal mais alta de todos os tempos em 2018, a juntar ao investimento público mais baixo de sempre em 2016. Não, os passageiros dos transportes públicos de Lisboa não têm razões para agradecer passes a 30 euros. Porque esses passes não vão ser pagos quando forem carregados, mas quando descontarem para o IRS, liquidarem o IVA das compras ou esperarem pelo comboio que circula atrasado ou não circula por falta de peças. Tal como não há almoços grátis, também não há passes grátis.

As oposições preferiram pegar no milagre dos passes pelo lado da desigualdade territorial: todo o país vai pagar pelos utentes dos transportes públicos metropolitanos, sem perspectivas de beneficiar da mesma liberalidade. Mas aqui não há apenas uma injustiça. Há um cálculo eleitoral cínico, porque obviamente alguém fez contas aos votos e percebeu onde é que as eleições se ganham e perdem em Portugal.

Imaginem agora a alternativa. Em vez de distribuir passes a preços de saldo, o governo tratava de criar condições para baixar a carga fiscal e conter a inquisição tributária que lhe está ligada. Ou seja, em vez da opção de comprar um passe mensal a 30 euros, dava ao cidadão, não lhe tirando tanto dinheiro, a possibilidade de escolher entre comprar um passe ou comprar outra coisa qualquer ou até poupar, conforme as suas conveniências. Quais as desvantagens em o Estado gastar menos e deixar mais dinheiro no bolso dos cidadãos? Para o Governo, haveria esta enorme desvantagem: diminuiria a sua capacidade de controlar a vida das famílias e dos indivíduos, e de, por essa via, aparecer como o Pai Natal em véspera de eleições.

Dirão alguns: os impostos pagos por todos permitem acorrer aos mais necessitados. Mas este apoio não exigiria semelhante carga fiscal, que aliás não poupa os mais pobres. Pelo contrário, os impostos têm, entre outros, o efeito de aumentar o número dos necessitados, ao diminuir o rendimento de que as famílias podem dispor autonomamente, tornando-as por isso mais dependentes do Estado.

Mas o sistema socialista é precisamente isto: um mecanismo de apropriação estatal dos recursos da sociedade, de tal modo que seja sempre o poder político a decidir da sua distribuição e da sua alocação. Queiram ou não queiram passes, são os passes que hoje estão disponíveis, como nas célebres lojas soviéticas, onde, conforme as piruetas do planeamento central, por vezes faltava leite, mas havia carrinhos de linha a preços fantásticos.

Já muita gente explicou as consequências econômicas e sociais deste sistema, a rigidez que cria, o mau uso dos recursos, os desequilíbrios recorrentes, as desigualdades. Mas é preciso perceber ainda o que isto significa politicamente: trata-se da maneira mais subtil de compatibilizar a democracia com a oligarquia, isto é, de permitir que uma pequena claque de amigos e de famílias, como aquela que atualmente reina em Portugal, manipule o voto de todos. É através do favorecimento ou da ilusão de favorecimento de determinadas classes de eleitores, que os oligarcas tecem as malhas do bunker eleitoral que os poupa aos custos de uma ditadura sem terem de renunciar aos deleites de um poder quase tão autocrático. Por isso, a causa do liberalismo é hoje a causa da democracia.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 2-4-2019

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