Rui Ramos
Em 2016, disseram-nos que a austeridade era
uma página, e que estava virada. A austeridade, porém, não é uma página. É um
livro inteiro, de que já ninguém lembra o princípio e ninguém sabe o fim
Mário Centeno [foto] confessou-se
ao Financial Times: afinal, a austeridade não acabou em Portugal. Entre o governo de
Passos Coelho e o de António Costa, teria havido mudanças, mas não grandes
mudanças. Bem, precisávamos da sinceridade ou do descuido de Centeno para
descobrir isto? Não, bastava-nos olhar para as estatísticas: o esforço fiscal –
um dos mais pesados da Europa, quando se tem em conta o nível de riqueza do
país – não abrandou com Centeno, tal como não começou com Vítor Gaspar.
É que o governo de António
Costa não nos enganou apenas sobre o fim da austeridade; enganou-nos também
sobre o seu princípio, que não foi em Junho de 2011, quando o governo de Passos
Coelho tomou posse, mas nos quatro PEC que José Sócrates apresentou a partir de Março de 2010 ou, se quiserem ir mais longe, na pressão fiscal que nunca parou de se agravar desde os anos 90,
logo que o Estado deixou de poder contar com o crescimento da economia para se
financiar.
Em 2016, disseram-nos que a
austeridade era uma página, e que estava virada. A austeridade, porém, não é
uma página. A austeridade é um livro inteiro, um livro enorme, de que já
ninguém lembra o princípio e de que ninguém ainda adivinhou o fim. A
austeridade não é uma dificuldade momentânea, que possa ser ultrapassada numa
conjuntura favorável. Vimos isso agora, quando o contexto internacional não
podia ser mais propício.
À primeira vista, a
austeridade aparece sob a forma dos défices baixos negociados com Bruxelas. São
a condição de acesso ao dinheiro barato do BCE, sem o qual a bancarrota seria
mais ou menos instantânea. Assim são justificados a “contenção” e o “rigor”.
Mas “contenção” e “rigor” são também necessários porque é preciso compensar a
despesa com que a oligarquia política mantém os dependentes do Estado que
transformou em clientelas eleitorais. É por a oligarquia não querer renunciar a
este apoio, que precisa de obrigar o resto da sociedade a pagar os seus custos,
sob a forma de impostos altos, serviços públicos degradados, ou falta de
investimento. A austeridade é, assim, o rosto que tem o sistema de poder numa
sociedade onde o crescimento da economia já não dilui o preço dos compromissos
políticos.
Por isso, podemos mudar a
“mistura”, mas no fim fica sempre austeridade: este governo, por exemplo,
devolveu salários e regalias aos funcionários, mas por isso mesmo teve de
manter a carga fiscal, agravar impostos indiretos, cortar o investimento e
prejudicar os serviços públicos. Foi uma opção que pôde fazer porque,
dizendo-se de esquerda, sabia que não haveria reportagens dramáticas sobre a
“destruição do Estado social”. Eis como o SNS, as escolas e os transportes
públicos foram martirizados como nunca tinham sido sob a troika.
A anti-austeridade
militante, que tanto agitou a avenida e a aula magna até 2015, foi outra
componente fundamental destes malabarismos. Passava por ser a expressão
espontânea do “descontentamento social”. Sabemos agora que existiu em função
das conveniências de algumas organizações partidárias. Até 2015, PCP e BE só
viram perigos e abismos. Desde então, sentados à mesa do orçamento, calaram as
críticas ao euro, deixaram de estar angustiados com a dívida pública, toleraram
as cativações de Centeno, aceitaram a redução de Portugal a um paraíso fiscal
para estrangeiros, e não dão pela crise do SNS. No fundo, acabaram com a
austeridade desta maneira expedita: deixaram de protestar contra ela, e ela
nunca mais foi assunto. Quem precisar de uma prova de como o espaço público em
Portugal é pobre e limitado, está aqui. Nunca tão poucos puderam enganar tantos.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
12-4-2019
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