Alberto Gonçalves
Em meras três horas e pouco António Costa
percorreu setenta e três quilômetros, proeza notável nos idos de 1850. Ou, nos
centros urbanos portugueses, em 31 de março de 2019. Não fazia ideia do atraso
em que vivemos.
Talvez por falta de
patriotismo, oportunidade ou decência, prefiro viajar para dentro lá fora do
que para fora cá dentro, pelo que não sou íntimo de boa parte do “país real”.
Principalmente a sul. Por isso, não sabia que, antes da passada segunda-feira,
1 de abril, “era difícil viajar na Área Metropolitana de Lisboa”, para citar
uma autarca dali. E não sei exatamente o que aconteceu desde então. Sei que o
governo lançou um cartão milagroso para os transportes públicos. Sei que o
cartão poupa aos “utentes” (desculpem) dezenas de euros mensais. Sei que metade
do governo se enfiou nos ditos transportes para demonstrar essa revolução na
“mobilidade” (termo técnico). E sei que o dr. Costa estava às 7h30 da manhã em
Mafra e às 10h41 penetrou Setúbal, fresco como uma alface e luzidio como uma
azeitona. Em meras três horas e pouco o primeiro-ministro percorreu setenta e
três quilômetros, proeza notável nos idos de 1850. Ou, nos centros urbanos
portugueses, em 31 de março de 2019.
Sinceramente, não fazia ideia
do atraso em que viviam as nossas gentes. E continuo sem fazer. Quanto tempo se
demorava até agora, duas semanas? Não havia estradas para Setúbal? As pessoas
iam a pé, a desviar-se de lezírias e salteadores? E hoje, inaugurou-se de
repente a locomotiva a vapor ou, por insondáveis leis da física, o desconto no
“passe” acelera a viagem por carroça? E o assalariado que dorme em Mafra, levanta-se
a meio da noite e desagua no Sado quase ao almoço, não é despedido por quê? As
questões acumulam-se.
Outra questão prende-se com o
alargamento dos descontos, ainda que em dose minguada, à região do Porto. Para
quê? Nos meus percursos por aqui, na vasta maioria prévios ao recente dia das
mentiras, os mesmos setenta e três quilômetros percorrem-se numa hora, hora e
meia com trânsito, duas horas com o eventual acidente. Só se demora três horas
e dez se um camião-cisterna explodir na VCI e dois camiões-cisterna explodirem
na Circunvalação. Ainda no último fim-de-semana cheguei a Guimarães (cinquenta
quilômetros) em meia hora, numa sexta à tardinha. E regularmente chego a
Bragança em noventa minutos.
Sucede que eu uso carro. É
claro que os carros, inventados e popularizados há já algum tempo, são caros de
comprar e caríssimos de alimentar, devido aos impostos que o Estado cobra para
financiar – com vasta generosidade, note-se – os descontos nos “passes”,
sobretudo lisboetas. Porém, rodam com relativa velocidade e desembaraço. São
tão úteis que aconselho aos governantes a respectiva utilização.
Suspeito, porém, que os
governantes não me ligarão nenhuma. Vi-os, com estes que a terra há de comer,
assaz contentinhos a mostrar os novos “passes” às câmaras dos repórteres que
por acaso se encontravam nas exatas carruagens do dr. Costa, dos amigos do dr.
Costa e dos familiares dos amigos do dr. Costa. Não acredito que o
contentamento fosse simulado para propaganda: seria uma rematada pulhice em
políticos de cuja honestidade ninguém duvida e uma imensa trafulhice em
jornalistas cuja ética ninguém belisca. Estou convicto de que o séquito do dr.
Costa abusará dos “passes” a ponto de estes se transformarem em pergaminho.
A alegria dos estadistas era
com certeza sincera, e a de quem levou a vida a procurar mover-se nas
imediações da capital em cima de burro, trotinete ou monociclo. E era a alegria
de quem, doravante, pode erguer com o orgulho o “passe”, e “ir a Sintra comer
queijadas, gelados a Cascais, marisco a Mafra, choco a Setúbal”, e “escolher as
praias onde lhe apeteça ir, os ventos do Guincho, as da costa oeste, da costa
azul”, além de “ir ao Parque Natural Sintra-Cascais, a exposições a Lisboa, ao
teatro a Almada.”, nas bonitas palavras do dr. Costa.
Ignoro o que leva o ser humano
médio a desejar ardentemente apanhar com os ventos do Guincho ou com o teatro
de Almada, para cúmulo na companhia do conselho de ministros em peso. De
qualquer maneira, é ótimo percebermos que, com os vinte ou trinta euros que
economizam no “passe”, os trabalhadores sem capacidade de sustentar um
automóvel poderão perder-se em folias gastronômicas e culturais a escassas
horas de distância. É igualmente verdade que, caso não tivessem os rendimentos
delapidados pelo Estado, inclusive para o patrocínio dos transportes públicos,
alguns trabalhadores conseguiriam visitar ocasionalmente os restaurantes de
Madrid e os museus de Londres – de resto mais rápidos de alcançar. E muitos
conseguiriam, imagine-se a loucura, ter carro. Assim os deixassem escolher.
O que vale é que não deixam.
Largados sozinhos e sem a devida orientação fiscal, os cidadãos tenderiam a
tomar decisões temerárias e fatalmente irresponsáveis. No limite, não me
surpreenderia que houvesse gente a gastar o seu dinheiro em benefício próprio,
com previsíveis, e desastrosas, consequências. À semelhança do que calha ser
público, os transportes são um excelente exemplo da importância de existirem
uns poucos a subtrair em nome de todos o que é de cada um. Em seguida, atafulham-se
com tudo e devolvem um nada sob forma de esmola a uns tantos. É aconselhável
celebrarmos o exercício com entusiasmo, quiçá com uma queijada de Sintra ou um
choco não sei de onde. Também é aconselhável sermos terminalmente imbecis. Com
ou sem “mobilidade”, não vamos longe.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
6-4-2019
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