Aquilo que chamamos acaso não é, não pode deixar de ser, senão a
causa ignorada de um efeito conhecido.
Voltaire
Elimine a causa e o efeito cessa.
Miguel de Cervantes
Um evento social de grande
impacto, de importância transcendental para a vida de um país, não surge do
nada, não é fruto de geração espontânea. Sempre há uma cadeia de outros eventos
que se confederam e formam uma cadeia causal antes de se transformarem no
grande evento, não se tratando portando de uma cadeia causal linear
aristotélica, mas de cadeia causal complexa linear, tão ao sabor dos fatos
sociais.
No curso dessa cadeia, nem
sempre as pessoas se apercebem que o fato consequente, lá na frente, está sendo
gestado pelos fatos do presente. Principalmente quando se trata, como é o caso,
de fato social de enorme complexidade em suas imbricações histórico-político-econômicas.
Aqueles que estão afeitos ao
estudo da lógica sabem que numa cadeia causal há as causas próximas e as causas
remotas e que há causas necessárias e causas suficientes. As causas necessárias
compõem-se de fatos sem os quais o evento não é causado, embora, de per si, não
sejam suficientes para a sua geração. A causa suficiente é a que, por si só,
gera o evento.
Acredito que evento social tão
complexo como uma revolução, ou uma intervenção militar na dimensão da que foi
feita no Brasil, reivindica para o seu desabroche muitas causas necessárias,
pois dificilmente repousa em uma só causa, de si mesma suficiente. Posso estar
enganado. Os mais bem informados dirão.
Posto tal pressuposto, vamos
ver a cadeia de eventos, os próximo e os remotos, que forjaram a intervenção
militar, ou simplesmente golpe, como muitos proclamam. Para mim, a substância,
mais que o rótulo, é o que importa.
Devo repetir que o meu relato
não passa de uma visão pessoal dos acontecimentos. Pode não ser a melhor, pode
não ser a pior, pode estar completa ou parcialmente certa, como pode estar
equivocada às inteiras. O que me importa é a direção que meu conhecimento dos
fatos e minha visão de mundo apontam. Para ser honesto para com quem me lê,
tenho que ser honesto para comigo mesmo.
A partir dos anos trinta, até
os anos oitenta, o Brasil teve um vigoroso crescimento econômico, somente
igualado por pouquíssimos países. Era a transformação de um país de base
agrícola, com taxa altíssima de analfabetismo, num país em processo de
crescente industrialização e também de fomento da chamada indústria de
serviços.
No curso de sua segunda
investidura na presidência da república – a sua fase democrática -, Getúlio,
por escândalo que aos costumes políticos de hoje pareceria marotice de freira,
para evitar uma deposição militar e, por certo, tendo a vergonha que
hodiernamente falta aos nossos homens de estado, suicida-se.
Foi criada uma crise política
passageira, debelada por eleições que resultaram na vitória de Juscelino
Kubtischeck (JK), ex-governador de Minas Gerais, embora algumas brasas
permanecessem sob as cinzas de uma certa insatisfação militar de que o levante
de parte da força aérea em Aragarças, rapidamente contornado por Juscelino, foi
uma indicação.
Quando do advento do governo
JK, o Brasil, como já dito, experimentava um crescimento econômico médio dos
maiores do mundo, incrementado para taxas bem maiores no período desse novo
governante. O modelo econômico vigente por cinco anos no período juscelinista
teria que, mais cedo ou mais tarde, terminar em crise e em inflação alta. Em
minha visão da economia, ancorada no liberalismo econômico e na
responsabilidade fiscal do Estado, esse período chamado anos JK, sem ser tão
desastroso, em parte se assemelha ao período petista da segunda metade do
governo Lula até o final melancólico do governo Dilma: intervenção na economia,
prática artificial de juros baixos para incentivar o consumo e o uso de
políticas visivelmente inflacionárias.
JK partiu para o uso das
reservas previdenciárias, emissão irresponsável de papel moeda e o delirante
plano de construção de Brasília, como se o país tivesse riqueza suficiente para
isso. Esse tipo de governante, fiscalmente irresponsável, goza sempre do fácil
aplauso de quem não conhece do riscado, mas deixa as consequências nefastas,
não perfeitamente perceptíveis em seu período, para o próximo governante, que
tem de pisar no freio para rearrumar as destroçadas finanças públicas e
combater a inevitável, crescente e herdada inflação. O governo Temer está
passando por isso, tendo que tomar medidas duras, mas necessárias, cujos
efeitos benéficos só são sentidos nos médio e longo prazos. Até lá, arrostará a
insatisfação popular.
Eleito sucessor de JK, Jânio
Quadros teve que pisar no freio e tomar medidas amargas. Não tinha respaldo
partidário amplo, eis que sua base repousava na UDN, partido de grandes
quadros, mas minoritário em ambas as casas congressuais, dominadas por uma
oposição majoritária formada pela aliança PSD/PTB.
Como seus projetos de lei eram
barrados e as medidas fiscais, embora necessárias, duras, sua grande base
popular se erodiu rapidamente. O povo é sempre impaciente em relação aos
remédios amargos, mas necessários. Todos querem resultados rápidos.
Sobreveio sua inesperada e
espetaculosa renúncia. Não vou aqui, por que não vem ao caso, especular sobre
os motivos de tamanho e irresponsável gesto. Entretanto, abro parênteses para
explicar algo que considero importante. Naquela época, o voto no candidato a
presidente era desvinculado do voto no candidato a vice. Assim, Jânio, eleito
pela UDN, tinha um vice, João Goulart (Jango), herdeiro do trabalhismo e do
populismo getulistas, apoiado por outra agremiação política, o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), oponente ao novo governante.
Sendo João Goulart herdeiro
direto do que havia de pior no getulismo, houve, em afronta à constituição, um
veto político-militar à investidura do vice-presidente João Goulart na
presidência, então vaga.
Esse veto levou o cunhado de
Jango, então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, a se insurgir
contra a inquestionável ilegalidade, apoiado pelo general Machado Lopes,
comandante do Terceiro Exército, acantonado no Sul do país, armada fortíssima
por ser, em termos de geoestratégia militar, o elemento de contenção de uma
confrontação com a Argentina, considerada o único país na América do Sul capaz
de medir forças com o Brasil.
Para não me alongar, passarei
por cima dos detalhes, para chegar à conclusão de que esse levante
rio-grandense garantiu a investidura de Jango na presidência. Mas a coisa não
se deu assim de barato. Para aceitação de Jango, houve intensas negociações e o
Brasil, de um dia para a noite, passou a um regime parlamentarista. Como
elemento dessas negociações ficou estabelecido que, após um ano, haveria um
plesbicito para o povo decidir se continuava ou acabava com o sistema
parlamentarista de governo.
Em espaço pouco superior a um
ano, tivemos três primeiros-ministros. Jango sempre nomeou, como era de se
esperar, um aliado como primeiro-ministro e procurou boicotar o sistema para
que o povo o rejeitasse, criando a falsa impressão de que parlamentarismo era
sinônimo de desorganização administrativa e crise econômica. Feito a consulta
popular, o parlamentarismo foi rejeitado e Jango ficou investido de todo o
poder presidencial.
Jango, sempre empurrado por
toda a esquerda, Brizola na vanguarda, abandonou as políticas de austeridade
fiscal e adotou o populismo, traduzido em tabelamento de preços, aumento de
salário mínimo e uma pauta de reformas, intitulada reformas de base, cujo
significado estava na cabeça de cada um dos protagonistas, ao sabor da
ideologia esquerdista, em seus diversos matizes.
As centrais sindicais, sempre
controladas pelas esquerdas, passaram a um regime de greves constantes. As
finanças públicas se esfacelavam, a inflação ganhava contornos catastróficos e
as ditas reformas de base cada vez mais se apresentavam como projetos radicais.
Tudo se confederava contra
Jango: insatisfação popular decorrente da galopante inflação e das greves
constantes; inquietação no campo pelo anúncio de uma reforma agrária radical e
contrária a qualquer lógica econômica; reação dos partidos políticos não
alinhados com a esquerda; além da inquietação nos quartéis, que nunca engoliram
a sua posse. O seu populismo cevado no trabalhismo getulista levou-o a buscar o
apoio de forças radicais, capitaneadas pelo Partido Comunista e o amplo leque
de esquerda, e a pregação panfletária, incendiária e caudilhesca de Leonel
Brizola que queria porque queria ser candidato a presidente da república,
embora a tal constitucionalmente impedido pela sua condição de cunhado do
presidente, casado que era com uma irmã de Jango.
A sociedade civil começou uma
ampla mobilização para oferecer resistência às tais reformas de base que se
anunciavam contrárias aos interesses de todos os segmentos empresariais. Havia
um temor sobre as intenções e os caminhos apontados pelas ações de Jango, e,
mais do que isso, a atuação aberta de suas forças de sustentação por soluções
radicais. Francisco Julião, deputado federal, criava ligas camponesas,
organização parecida com o atual MST; a CGT, uma espécie de CUT, vivia
promovendo greves nos mais diversos setores e anunciando e provocando greves
gerais; Leonel Brizola organizava os chamados “grupos do onze”, onde albergaria
os mais radicais dos seus apoiadores; os quartéis estavam sendo submetidos a
uma crescente politização e a uma tentativa de sindicalização pela cooptação de
oficiais de escalões inferiores, embora membros do círculo superior já fizessem
pronunciamentos políticos que se confundiam com o apoio à indisciplina, algo
intolerável para as forças armadas cujas estruturas organizacionais repousam
historicamente em rígidas hierarquia e disciplina.
Embora essas fossem, em
apertada síntese, as causas imediatas, há sempre aquele plus, aquele algo mais,
aquela última gota d’água que provoca o transbordamento.
Essa gota d´água foi o grande
comício da Central do Brasil, realizado na noite de 13 de março de 1964, onde
todas essas forças que apoiavam o presidente se fizeram presentes para celebrar
um ato de impulso às ditas reformas de base. Nesse ato, Jango, delirando de
suas possibilidades, em discurso radical, dentre outras medidas, declarou de
utilidade pública para desapropriação todas as terras que margeavam as rodovias
e ferrovias federais ou interestaduais, açudes, bem como rios e lagos que
banhassem mais de um estado. Ou seja, ameaçou o coração da produção
agropecuária em um país ainda majoritariamente de base rural. No campo não só
se concentrava a base econômica como também a maior parte da população, base
essa, que sustentava as agremiações partidárias. Nessa mesma época, houve no
Clube dos Sargentos uma assembleia em aberto desafio à hierarquia e a
disciplina militares.
Esses dois eventos, próximos
no tempo e sinalizadores da mesma direção, foram uma espécie de sinal verde
para a atuação militar, que já vinha sendo articulada de forma bastante
reservada dentro dos círculos superiores das Forças Armadas e requestada pelas
camadas mais fortes da sociedade civil.
Daí em diante, fica difícil
controlar as águas que rompem o dique. A expectativa geral de que haveria um
pronunciamento militar e uma possível intervenção materializou-se com o mais
amplo apoio da sociedade como um todo, principalmente os mais significativos
estamentos econômico, político, de comunicação e, logicamente, o militar.
No dia 31 de março de 1964, o
General Mourão Filho, chefe das forças estacionadas no Estado de Minas Gerais,
com amplo apoio político, principalmente dos governadores de Minas, de São
Paulo e do Rio de Janeiro, representativos de mais de oitenta por cento do PIB
nacional, iniciou a marcha em direção ao Rio de Janeiro para se juntar às
demais forças militares, já proclamadas revolucionárias, para a deposição do
presidente.
Não vou me alongar nessa parte
do tema porque as informações sobres esses eventos podem ser coletados em
livros, no Google e em outras fontes da internet, hoje, felizmente, de fácil
acesso a todos.
As causas acima, elencadas em
apertada síntese, constituíram a base de sustentação do ato final de ruptura
institucional, guindando as forças armadas ao empolgamento do poder, nunca
sendo demais realçar o apoiamento popular, principalmente da classe média que
aspira sempre a um ambiente de estabilidade política e econômica,
principalmente quando uma inflação galopante erode o poder aquisitivo de todos.
Seja como for, não devemos
perder de vista que essas causas têm como moldura o quadro político mundial
resenhado no artigo anterior.
Meu propósito aqui não é fazer
história, não é relatar com minudências fatos já bastante documentados e
registrados, ao conhecimento de todos acessíveis. Aqui meu propósito é dar
minha visão pessoal sobre o período militar, em suas diversas fases, que ele não
foi uniforme, nem em termos de política nem em termos de intervenção na
economia; e, dentro desse contexto, as causas e o significado da luta armada
perpetrada pela esquerda revolucionária.
Na próxima semana começarei a
análise desse período e desses fatos.
Um bom domingo para todos.
Título e Texto: Pedro
Frederico Caldas, 14-9-2017
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