sexta-feira, 31 de maio de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Amiguinho da onça

Aparecido Raimundo de Souza

TODA VEZ QUE O EURÍPIDES ia cobrar o tal do Horácio, quem aparecia para atender à porta era a mulher dele, uma jovem com dezessete anos, acompanhada de um garotinho nos braços. O apartamento do sujeito ficava no segundo andar, no final de um corredor comprido e de frente para a porta de um banheiro nojento que exalava um mau cheiro que se sentia de longe a catinga.

Cada andar do prédio comportava vinte residências, ou melhor, apertadas e raquíticas quitinetes, já que os aposentos, por dentro, não iam além de uma sala enorme, uma cozinha americana e um quarto. Não havia área de serviço e os residentes quando queriam lavar suas roupas tinham que subir para um terraço onde o senhorio instalara um tanque e um varal coletivo que ocupava todo o pavimento.

Aquela já era a quarta vez que o Eurípides batia a campainha na casa do Horácio e também a quarta vez que a mulher dele vinha atender, com a criança no colo e a resposta à mesmíssima das vezes anteriores:
- O senhor deu azar novamente. O Horácio ainda não chegou e nem sei a que horas vai dar as caras. O senhor não quer entrar, tomar uma água, ou um cafezinho?

Nas visitas passadas Eurípides recusara os convites. Não ficava bem entrar, sentar, tomar café, ainda mais com aquele pedaço de mau caminho que o ilustre caloteiro mantinha em casa. Verdade, a mulher do Horácio, embora fosse uma mocinha recém-saída das fraldas, dava um belo de um caldo. Não era de se jogar fora. E a safadinha atendia à porta vestida em poucas roupas.

Uma sainha muito curta, uma blusinha colada ao corpo insinuando um par de peitos fartos, sem sutiã, os biquinhos dos mamilos arrebitados. Sem falar nas pernas bem feitas, na barriguinha com o umbiguinho de fora e, nos lábios carnudos que se abriam sensuais e tentadores. Resumindo: a esposa do Horácio indubitavelmente se constituía numa tremenda de uma tesãozinha.

Mas naquele dia, Eurípides resolveu aceitar o convite e saborear o cafezinho. Não custava nada, tampouco tiraria pedaço. Que mal havia em perder alguns minutos ao lado daquela flor maltratada, apesar disso, rara joia de valor inestimável que mexia, e muito, com seu coração de homem às portas de um ataque de nervos?
- O senhor tome assento, por favor...

Eurípides se acomodou num sofá encardido, de dois lugares apenas, fedendo a urina e a cocô. A mulher botou o menino no chão e o rodeou com uma pá de brinquedos. Passou a cozinha que comportava um fogão de quatro bocas, uma mesinha cheia de panelas, pratos e copos, amontoados, misturados a restos de uma cesta básica dessas de supermercados, com pacotes de arroz, pela metade, feijão, lata de óleo e duas caixas de leite.
- Não repare a bagunça. Sabe como é. Quem tem criança pequena...

Eurípides se limitou a sorrir enquanto esperava lhe fosse servida a bebida. No assoalho desigual com alguns tacos faltosos, o garotinho não ficou um segundo quieto. Levantou-se e caminhou em direção ao quarto do casal, cômodo esse dividido por uma porta faltosa com um bercinho bastante antigo e caindo aos pedaços. O moleque chegou perto da cama e se abaixou. Olhou para Eurípides e apontou o dedinho em riste:
- Pa... pa... pai... pa... pai... lá...   

A princípio Eurípides não entendeu bulhufas o que o menino sinalizava em sua inocência. Só depois que a moça saiu às carreiras da cozinha e foi até ele, e o puxou, com força, pelo braço, se abaixando e deixando nesse mergulho, entrever a calcinha amarelinha minúscula, a ficha caiu e ele tomou pé da verdadeira situação.   
- Juninho, fica quietinho aqui. Mamãe está ocupada atendendo o titio. Quer ver televisão?

Sem esperar por resposta, ligou o aparelho, mas nem o desenho que passava conseguiu prender a atenção do sapeca:
- Pa... pa... pai... pa... pai... lá... emba... repetiu na sua inocência mal desabrochada.
Eurípides, num momento voltou à realidade. O indivíduo que ele fora cobrar estava em casa e, pior, escondido, feito um rato, acuado embaixo da cama.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Viracopos Campinas, São Paulo. 31-5-2019

Colunas anteriores:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-