Aparecido Raimundo de Souza
DONA PREGUIÇA AO
VER o seu
Canário Belga pousar no beiral de sua casa, se vira para o recém-chegado e faz
carinha de desconsolada. Fala:
- Que bom que apareceu. Estou com uma fome dos diabos. Não me faria um
grandessíssimo favor?
Seu Canário acha melhor dar uma de bom samaritano. Como tem interesse
na intrigante mamífera e sendo sabedor que, apesar de relaxada e ociosa, de
quando em vez ela dá umas puladinhas de cerca, assente, pressuroso:
- Qual dona Preguiça?
- Como o senhor voa rápido, corta os ares com uma velocidade
indescritível buscaria algo para eu comer lá na lanchonete do seu Zé Macaco?
Num primeiro momento o impulso da ave foi o de mandar dona Preguiça
lamber sabão. Todavia, se agisse dessa forma, cairia por terra qualquer
possibilidade de se achegar a ela e tentar alguma coisa mais caliente.
Impossível? Jamais! Lembrou imediatamente
do seu amigo distante, o Shrek, onde um burro sem eira nem beira se apaixona
por uma dragão fêmea. Pensando firmemente nessa probabilidade, apesar de todos
os prós e contras, não deixa de perguntar para ver até onde a dondoca pretende
chegar:
- E por que a senhora mesma não vai lá pessoalmente? Aproveita a noite fresca, o céu estrelado...
sem falar que as horas ainda não se perderam à revelia do silêncio!...
Dona Preguiça, todavia, tem resposta para tudo, na ponta da língua.
Rebate ladinamente esperta:
- Porque estou muito cansada seu Passarinho. Quase oito da noite.
Trabalhei até agora. Saio de casa às quatro da manhã para pegar no batente às
nove horas em ponto. Isso de segunda a sábado. Imagine! Como ando muito
devagar, o senhor tem conhecimento da minha fama. Gasto uma eternidade enorme
para fazer um percurso de meio quilômetro. Até chegar no Zé Macaco... ele já se
recolheu. Hoje dei sorte... dividi o táxi do seu Leão da juba grande com as
irmãs Simone e Silmara, as fogosas onças Pintadas.
Seu Canário vai mais fundo. Indaga:
- Ainda que mal pergunte. A senhora trabalha aonde?
- Na padaria do seu Pedro Javali.
Seu Canário fica sério e arqueia as sobrancelhas:
- Estranho!
- O que acha estranho seu Canário Belga?
- Praticamente não saio do comércio do seu Javali e nunca vi a senhora
por lá. Por favor, não me entenda mal...
- De forma alguma. Espera lá. Eu sei o motivo. Fico o tempo todo na
cozinha fazendo lanches e preparando pelo menos umas doze ou treze garrafas de
café e outras tantas de sucos os mais diversos. Daí o senhor não me ver.
Geralmente quem atende no salão são as coelhas Bia e Carol. Mas me diga aí, seu
Canário... que me recorde, das vezes em que apareci no salão, confesso,
igualmente nunca topei com o senhor sentado numa das mesas.
- Por certo, dona Preguiça, por certo lhe assiste inteira razão. Eu só
passo de passagem, digo, voo de passagem para pegar as refeições de meus dois
pequenos Belguinhas.
- Que bacana! Então o senhor é freguês do meu patrão Javali?
- Não exatamente...
- Não entendi. Não faz compras regularmente no empório colado à
padaria?
- Eu explico dona Preguiça. Eu e minha família (faço referência a meus
dois filhinhos) moramos nos fundos do estabelecimento, ou mais precisamente, no
topo de uma árvore enorme.
- Raios e trovões! O senhor se refere àquele carvalho nos fundos do
quintal?
- Esse mesmo em carne e osso.
- Como disse...?!
- Em galhos, raízes e folhas.
- Ah, sim! Quer dizer que aquela cantoria que escuto logo cedo, vem de
seus pequenos?
- Com certeza, dona Preguiça. Com certeza.
- Encantada. Não sabia que era nosso vizinho! Às vezes, seu Javali
joga uns restos de comidas fora...
- Eu sei. E, quando isso acontece, eu entro em cena catando essas
migalhas e distribuindo para meus bebês.
Dona Preguiça vendo seu Canário Belga falar de filhos e não
mencionando esposa, questiona abelhuda:
- E sua companheira? Deve ter uma, suponho?
- Qual o quê! Bateu asas e se mandou com um periquito australiano pra
bem longe...
- Verdade?
- Sim. A sem vergonha me trocou por outro...
- Já que é assim, seu Canário, posso lhe ajudar...
- Como me ajudar, dona Preguiça? Vai me pedir em casamento?
Dona Preguiça ri a boas gargalhadas:
- Pra Deus nada impossível. Quem sabe! Quando falei em ajudar, fazia referência
ao invés de deixar que seu Javali jogue as sobras fora, eu as guardaria e
entregaria diretamente ao senhor...
- Faria isso por mim?
- Sem problemas, seu Canário, sem problemas.
- Perfeito. Fechou. Vamos lá. O que é que a distinta quer comer?
- Uau! Iria buscar um lanche?
- Uma mão lava a outra, dona Preguiça.
- Eu sei seu Canário, eu sei. E as duas, o rosto. Aguarde um minuto
que vou lá dentro buscar o dinheiro.
Assim foi. Uma hora e meia depois dona Preguiça volta com o dinheiro.
Seu Canário, de posse dele, corre... corre... corre não, voa, até a lanchonete
de seu Macaco e traz o pedido para dona Preguiça, que se deleita com a
guloseima. Estava com uma fome dos diabos e aquele sanduiche de folhas de
Embaúba e brotos de árvores frutíferas, com queijo derretido lhe caiu como um
quitute de primeira ordem. Seu Canarinho não aceitou nenhum naco da iguaria que
lhe fora oferecida. Estava de papo cheio e seu interesse maior seria o de
cantar aquela preguiça de hábitos requintados, dona de grandes garras e que
igualmente aos demais da sua cadeia familiar, dormia quatorze ou dezoito horas
por dia. Isso não importava. Desde que ele lavasse a égua, ela poderia dormir
quantas horas lhe desse na telha. Aquela lindeza de corpo cinza claro, com
manchas pretas lhe deixava em estado desesperador. Precisava dar um jeito de
ser mais contundente em suas cantadas e chegar aos finalmente com a menor
brevidade possível.
Desde que sua adorada esposa, dona Passarinha lhe colocara um belo par
de chifres, seu Passarinho se fechara para o mundo. Todavia, com o passar dos
dias e dos meses, começou a se sentir triste e macambuzio. Precisava reagir.
Sair do ostracismo e seguir sua vida. Arranjar um novo cobertor de orelha,
alguém para dividir seus medos e receios e, claro, uma nova esposa que ajudasse
a criar seus dois filhotes. Os meninos
estavam crescidinhos, mas sem o amparo da visão materna necessária e
indispensável. Dona Passarinha, de fato, se fora de vez e jamais voltara a dar
as caras, sequer para rever os filhotes que orfearam sem saber o verdadeiro
motivo daquele triste abandono.
- Pois então, seu Canário – diz dona Preguiça após se fartar com o
lanche. - A partir de amanhã começarei a recolher eu mesma, o que seu Javali,
meu patrão jogar fora e guardarei para o senhor, digo para seus filhotinhos...
- Obrigado, dona Preguiça. Ficarei imensamente grato pela sua ajuda e
compreensão. A propósito: como farei para pegar essas “guloseimas?”.
- O senhor poderá vir aqui em minha casa ou diretamente ter comigo em
meu horário de saída...
- Não será muito incômodo para a sua pessoa, dona Preguiça?
- Que isso, seu Canário! Incômodo é doença. Farei com maior prazer. De
mais a mais, pense em seus pequenos...
- Por certo, dona Preguiça. Por certo. Bem, vou deixá-la em paz. Hora
de ir embora. Meus bichinhos estão sozinhos lá em casa e eu preciso me fazer
presente. Sabe como é né. A noite vai alta. Daqui percebo a sua escuridão se
achegando com um tremor inesperado. Hora de partir. Tenha bons sonhos querida.
Durma com os anjos.
- O senhor também, seu Canário Belga. Deposite em seus “gatinhos”
beijos do coração aqui da tia Preguiça.
Seu Canarinho Belga vira as costas e sai de cena num rasante
espetacular, deixando dona Preguiça acabando de se fartar com as migalhas
finais do sanduiche. Em casa, agasalhado aos filhos, seu Canarinho Belga pensa
com suas penas: “Aquela Preguiça vai acabar aqui em cima trepada comigo... ah,
isso vai”.
Por sua vez, enquanto se recolhe dona Preguiça ainda lambendo os
beiços em face do lanche devorado, não deixa de ter pensamentos pecaminosos:
- Apesar de toda a minha fama de bambeza e atonia, ainda trarei para a
minha humilde moradia, ou melhor, para a minha alcova aquele passarinho com
cara de safadinho. Quer saber? Vou investir. Essa história das iguarias que o
velho Javali joga fora me servirá de ponte para atingir, em cheio, o coração
desse Canário de voos majestosos. Que diabo daria o casamento de uma Folívora
placentária igual a mim com um ser da família dos Fringilídeos de plumagem
compacta e sem frisos? Amanhã, quando sair da padaria, consultarei a senhora
dona Coruja.
Seu Canarinho, mais esperto, dia seguinte, sai cedo depois de deixar
os filhotinhos devidamente alimentados. Bate às portas de dona Coruja, tida na
floresta como a simbolizadora ou a guardiã da inteligência, do mistério e do
misticismo, entre outras variantes. Paga a consulta e entra direto no assunto:
- Senhora dona Coruja, me mata uma curiosidade. Do relacionamento de
um Canarinho Belga com uma simpática de uma certa Preguiça, o que resultaria?
Dona Coruja responde de primeira, na lata, sem pestanejar:
- Certamente, meu caro senhor Canário Belga, uma linda ninhada de
pilosas voadoras.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Campinas interior de São Paulo. 10-5-2019
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APA, AMEI O TEXTO. Ninhada e pilosas voadoras em??!!
ResponderExcluirCarina,
Ca
Campinhas, São Paulo.
Isso mesmo, Ca. Ninhada de pilosas voadoras. É o que dará no caso do acasalamento de um Canário Belga, com uma Preguiçosa Preguiça. E antes que conteste meu texto, kikikikikikikikiki, não me diga que o Canário Belga não voa, porque é um bicho, uma ave, ou um passarinho de gaiola. O Canário Belga voa sim. E ainda que não voasse, ca entre nós, nós, escrevinhadores, temos a licença poética. Tanto meu Canário Belga pode voar, como, igualmente, sair andando a passos largos. Sei que não falou nada, apenas me antecipei. De resto, obrigado por ter comentado. Fico feliz quando você se faz presente em meus textos. Aparecido Raimundo de Souza, de Campinhas, São Paulo.
ResponderExcluirBem, vamos lá, seu Apa. Estava lendo "O Guia completo dos Canários Belgas" via Net, ou mais especificamente no "Portal dos Pássaros". Lá não diz que eles voam. Também não diz que não voam. Li todo o conteúdo de cabo a rabo. Como você tem licença poética, o animalzinho (o canário é um animal e não um pássaro) pode fazer com que voe ou ande de patinete aqui pelas ruas de Salvador. Descobri que eles cantam muito. Principalmente quando vão com a cara de um cantor ou de uma cantora. Esses animaizinhos gostam de música que tenham letra, e, de preferência, romântica. Notadamente quando querem se acasalar, dar uma namoradinha, etc. Vou dar um exemplo das preferências: Roberto Carlos, Angela Maria, Gal Costa, Toquinho, algumas de Zezé di Camargo e Luciano (não todas) e pasme, Eduardo Costa, Kell Smith e Daíra. Pablo Vittar e Anitta, nem pensar. Dessa forma, se você resolver criar um desses, fique atento. Beijos no coração. Carina, Ca, de Salvador, aqui na Bahia. Fui.
ResponderExcluirDe qualquer forma,