Alberto Gonçalves
Na idade da menina Alice e do menino Gil,
fiz diversas greves à escola a pretexto do clima: mal o sol aquecia, trocava as
aulas pela praia. Faltou-me ser entrevistado pelos “media”.
Estou totalmente de acordo com o dia de reflexão imposto pela Comissão Nacional de Eleições. Nem que seja por 24 horas, é preciso parar para refletir. E desanuviar. Há semanas que os portugueses não fazem outra coisa exceto discutir a Europa. Nas ruas, nos cafés, nos restaurantes, nas salas de estar, nos transportes públicos, nos transportes privados, nos andaimes das obras, nas bancadas dos estádios, nos lavabos dos postos de combustíveis, nos corredores das feiras de enchidos a Europa é a única coisa a encher a boca dos cidadãos (além dos enchidos, naturalmente). Cumprimento a senhora da padaria e ela desata a confessar preocupações com o futuro do euro. Cumprimento o empregado da oficina e ele produz uma opinião acerca do Brexit. Não cumprimento o vizinho e ele chama-me malcriado – e depois convida-me a visitar os belos retratos de eurodeputados que pendurou nas paredes de casa. Chiça, que é demais: não admira que a taxa de abstenção nas “europeias” de amanhã prometa rondar os 0%. Ou menos, que há gente tão entusiasmada que tentará votar duas ou três vezes.
Por mim, apenas tenciono votar
uma. Não digo em quem, ou no quê, porque a CNE não deixa. E faz muito bem. É
tempo de obrigar as pessoas a dedicar o tempo delas a assuntos diferentes, que
também os há. Há a bola, claro, sempre uma fonte riquíssima de alegria,
racionalidade e bordoada. Há o caso da triviúva que, em conluio com o
triamante, é acusada (triplamente, suponho) de matar um (um?) senhor que era
triatleta e seu trimarido. Há o drama do dr. Moita Flores, que após anos a
comentar crimes, bicrimes e tricrimes, se vê agora suspeito de pentacrimes
enquanto autarca. Há a continuação da polémica, com um só lado, em volta das
comendas do comendador Berardo, de longe o ponto de maior interesse na
corrupção do regime. Há a baba generalizada com a atribuição de um prémio qualquer
a Chico Buarque, bom letrista, prosador fraquinho e imbecil de gabarito. Há o
“contingente” [sic] da Proteção Civil dispensado para, a expensas públicas,
ajudar uma telenovela da SIC a recriar os incêndios de 2017. Há as proezas do
governo, que nos enriqueceu a ponto de podermos pagar os combustíveis e a eletricidade
mais caros da UE.
Acima de tudo, ou exatamente
abaixo, há a segunda “greve climática estudantil”. Não sei se a adesão foi
maior ou menor do que a primeira, realizada em março. Sei que desta vez as
nossas crianças (salvo seja) não precisaram de seguir uma modelo sueca (salvo
seja), a divertida “ativista” Greta. Em dois meses, o empreendedorismo pátrio
conseguiu produzir “ativistas” próprios, e logo em dose dupla: Alice Gato e Gil
Ubaldo. A menina Alice e o menino Gil concederam uma entrevista à Renascença e
ao Público, e a entrevista é um primor.
Para começar, uma das
jornalistas parece falar com a menina Alice e com o menino Gil como se falasse
com a pequenita Maria Armanda à época em que “Eu Vi Um Sapo” venceu o Sequim
D’Ouro. Para continuar, a menina Alice e o menino Gil falam com as jornalistas
como se fossem a pequenita Maria Armanda – mas sob os efeitos de uma educação
deficitária em juízo e pródiga em clichés.
Exemplos? Vamos a eles: “O 15
de Março foi o início de uma luta e o 24 de maio é para demonstrar que não nos
vamos embora até essa luta ter alguma resposta”; “Para sermos rebeldes e
agirmos contra o sistema, temos de começar na juventude. Temos reivindicações
sérias e vamos sair à rua para mostrar isso até ao fim”; “Nós até temos
crianças da primária a irem às nossas manifestações. E há um grande
envolvimento dos professores e dos pais”; “Sim, é verdade, nós faltamos às
aulas. A greve estimula muita gente a ter uma ação diária. Faltar às aulas é o
menor do nosso problema. Não vale a pena estarmos a ir a uma aula, quando o
nosso sistema de ensino não nos incentiva a agir por aquilo que nós
acreditamos”; “É como a Greta diz: Nós não conseguimos mudar o clima sem mudar
o sistema”; “A nossa luta é transversal e, enquanto lutamos pelo clima, não
podemos deixar para trás a luta laboral. Além disso, reivindicamos o
melhoramento eficaz da rede de transportes públicos, de modo a reduzir o uso do
transporte particular”. E a minha atoarda favorita, a propósito dos objetivos
do “movimento”: “Termos 100% de energias renováveis até 2030 e a proibição da
exploração de energias fósseis em Portugal”.
Só não é impossível compilar
resma comparável de ignorância, criancice, ócio mental e sintomas da desgraça
em que estão o ensino e a paternidade atuais na medida em que existe o
esquerda.net. Suponho, aliás, que, para a menina Alice e o menino Gil, o site
constitua leitura de referência e referência profissional: não faltam carreiras
disponíveis para quem, munido de uma “visão” para o “futuro” e fé cega, decide
enveredar pelo encantador caminho das “causas”.
Se eu soubesse, teria
aproveitado a oportunidade. Na idade da menina Alice e do menino Gil, fiz
diversas greves à escola a pretexto do clima: mal o sol aquecia, trocava as
aulas pela praia. Faltou-me ser entrevistado pelos “media”. E faltaram-me as
“redes sociais” para divulgar o que talvez passasse por uma “ideia”. E
faltaram-me os telemóveis e os computadores para multiplicar os parceiros de “luta”.
E faltaram-me a lembrança e a lata de transformar a preguiça num modo de vida.
E faltaram-me familiares que acolhessem as gazetas, perdão, as greves com
orgulho e não com uma sova. Hoje, falta-me a paciência para explicar à menina
Alice e ao menino Gil que o “sistema” que “combatem” é justamente aquele que
lhes tolera, aceita e, nos momentos de masoquismo, aplaude esse “combate”. Se
calhar eles já sabem.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
25-5-2019
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