terça-feira, 18 de junho de 2019

[Pensando alto] O encontro, o gênio e a gênese

Pedro Frederico Caldas

E disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.
Gênesis 1:26      

O homem, com suas nobres qualidades, ainda carrega no corpo a marca indelével de sua origem modesta.
Charles Darwin

Esperara tanto por aquele momento, mas era chegada a hora; finalmente, era chegada a hora... Sabia tudo e não conhecia nada do que ia ver. Movimentava-me lentamente na direção do encontro, expectado, quase em transe; tinha e não tinha consciência do que se passava; estava entre o sonho e a realidade; mas, finalmente era chegada a hora, aquela hora tão esperada, tão acalentada. Se tanto possível, havia um sentimento de tranquilidade e de tensão, numa situação dialética a ser superada.

Eu me via sem reflexo de espelho. Saíra de mim mesmo para me observar. Não sabia se os pés estavam no chão, não sentia o andar. Estava como um astrofísico que tudo sabe sobre buraco negro, sem nunca ter entrado em seu vórtice. Vi-me transpor os umbrais e chegar ao local do encontro. Lá estava eu, olhos ao alto.

À proporção que O via, todo o murmúrio ao meu entorno ia se dissipando, como a mortiça luz do crepúsculo vespertino. De repente, vejo-me deitar suavemente em decúbito dorsal, respaldado no piso.

Então, há uma sensação de discreto levitar, seguido de uma ajustada posição para ver o alto, ver o infinito, para aonde me transportara, onde me via enquadrado. Sentia-me parte da paisagem por mim mesmo contemplada. E lá, próximo a mim, estava Ele. O rosto emoldurado por barba e cabelos longos, levemente revoltos, vergando uma túnica diáfana e inconsútil, braço em riste, índice em minha direção, com a manifesta intenção de tocar-me, de dar-me vida, uma vida que julgava já me houvera sido concedida. Os sentimentos baralhavam-se: ele me tocaria por eu já existir, ou com o toque me concederia a existência?

Era a mim mesmo que Ele criava, ou eu estava assistindo ao ato único da criação? Não importa, o momento era sublime e grandioso. Ali, em toda aquela cena, havia a marca da genialidade. Eu via o seu olhar penetrante, poderoso e doce ao mesmo tempo, seguro de fazer o que lhe aprazia fazer. Parecia dizer que o Seu toque poderia criar qualquer coisa, poderia transformar qualquer desiderato em concreção, poderia do nada tirar a vida, e à vida conceder um destino, um destino entregue em nossas mãos para ser talhado por decisão própria, ainda que jamais soubéssemos qual seria.

Quanta liberdade e quanta submissão. Livre para decidir e escravo da decisão tomada, pois somos as nossas escolhas e as nossas escolhas são o que somos. Essa seria a grandeza e a tragédia para todo e sempre. A responsabilidade pela decisão tomada seria o ferrete incandescente a marcar a todos e a cada um por toda a vida. Passava os olhos de uma visão para outra e contemplava toda a senda daí por diante percorrida, ali estava gravada toda a nossa trajetória, todos os nossos momentos de grandeza e de abjeção, todas as resistências e todas as submissões, tudo sob o sinete do julgamento final.

O mais importante, entretanto, era aquele momento do faciunt vitam, a certidão de nascimento do homem, feito à Sua imagem e semelhança, destinado por isso mesmo a todas as grandezas, a ser o senhor do universo, capaz das obras mais geniais, possibilidade cujo atestado, ante a grandeza da obra contemplada, me era dado naquele exato momento a que tudo admirava.

Não obstante, decaídos pela insubordinação ao ditame divino, perdida a ingenuidade, recebêramos o sinete da condenação, cada qual condenado a viver o seu próprio drama, mas admoestado a não sucumbir às tentações inúmeras, que tudo seria submetido ao julgamento do Seu Filho, exatamente como eu estava vendo em direção mais abaixo.

Toda a nossa trajetória circunscrita a um ambiente, genialmente concebida e executada. Ainda assim, naquele momento, entre a inconsciência e a realidade, sentia a primazia de ser a sua obra, de tê-Lo por ancestral. Tudo aquilo me dava um toque divinal, sentia orgulho da minha natividade e, por isso mesmo, contemplando a genialidade de uma obra de que só o homem era capaz de cometer, dizia, de mim para mim mesmo, extasiado: só nós somos a tanto capazes, que obra, que obra, genial, genial, genialidade divina!

No transe da admiração, sinto alguém, tocando-me o braço, tirar-me daquele torpor, daquela enlevação, como se estivesse transitando do sonho ao despertar... Olho e vejo, frente a mim, uma figura diferente, coberta de pelos negros, arcada superciliar proeminente, boca esgarçada, equilíbrio vacilante, a dizer-me com um sorriso sarcástico: “Genialidade divina nada, sou o vosso verdadeiro ancestral, quem de mim descende não se confinará ao genial”. - Como posso ser você se fiz coisas belas, maravilhosas, geniais? Olha o seu derredor, veja do que sou capaz! – “Vós não sois eu, verdade, mas em vós me transformei. Vede o Holocausto, vede o Arquipélago Gulag! É essa a vossa grande obra? É disso que vos orgulhais?”.

Passara do encantamento à angústia, da glória ao nada. Sentia toda a possibilidade de grandeza e genialidade esvanecer-se. Fora reduzido, por aquela sentença, à insignificância. Era como se houvesse um precipício aos pés, uma queda no vazio infinito, quase um pesadelo. Eis que saio do transe, apuro os sentidos, desperto para a realidade e vejo e ouço o guia dizer: “Vamos, senhor, levante-se! Já vai fechar a Capela Sistina”.

Teto da Capela Sistina - Palácio Apostólico (Cidade do Vaticano). Foto: RPBaião/Sutterstock.com
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas

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