Rui Ramos
Não podemos aceitar que uma história
comovente, como a do salvador português, baste para encerrar o debate sobre as
migrações ilegais para a Europa. Porque não é questão que se resolva só com
emoções.
Um jovem português diz-nos
que não pede o passaporte para salvar alguém que se esteja a afogar, e eu digo:
muito bem. Os seus amigos dizem-nos que não devemos discutir o que ele fez,
agora que se trata de lhe salvaguardar os direitos perante os tribunais
italianos, e eu digo outra vez: muito bem. Sim, estou de acordo: um náufrago,
seja quem for, deve ser salvo, e um cidadão português, faça o que fizer, deve
ter a devida assistência quando confrontado com justiças estrangeiras. Peçam-me
para acreditar em tudo isso, que eu acredito. Só não me peçam é que aceite que
uma história comovente baste para encerrar o debate sobre as migrações ilegais
para a Europa.
É louvável estar num barco na
costa líbia para impedir migrantes clandestinos de se afogarem; mas é talvez
menos louvável que esse barco sirva para os transportar depois para a Europa,
facilitando assim o trabalho das redes de tráfico de pessoas. A migração
deriva, como é óbvio, do desnível de riqueza e de segurança entre a nossa parte
do mundo e as que lhe estão próximas. Mas também é causada pela percepção de
que é fácil entrar na Europa e imediatamente remunerador. Só assim tanta gente
se dispõe à lotaria de travessias controladas pelo crime organizado. Contribuir
para essa percepção é criar ilusões que só servirão para pôr ainda mais gente
em risco.
Dir-me-ão: devemos então
deixar morrer os migrantes que se perdem no mar? Claro que não. Isso
significaria renunciar àquilo que somos e representamos. Mas de outra maneira,
o que somos e o que representamos também está em causa quando, violando a lei,
os migrantes desembarcam. Não, as coisas não são simples.
A Europa precisa de migrantes.
Não apenas porque a sua população não se reproduz, mas porque as nações
europeias sempre se reforçaram acolhendo estrangeiros desejosos de viver como
se vive nessas nações e até fazer parte delas. A Europa, porém, não precisa de
um afluxo descontrolado e caótico de pessoas oriundas de outros continentes.
Porque a Europa não é apenas territórios, mercados ou sistemas de segurança
social: a Europa consiste em comunidades históricas que dão sentido a esses
territórios e que são o fundamento último desses sistemas e desses mercados.
Pôr essas comunidades em causa é arriscar tudo, inclusive o que atrai os
migrantes para a Europa.
O problema não está apenas nos
números, que caíram depois da maré cheia de 2015. Está no facto de nunca as
migrações terem incluído tantos grupos que recusam valores consensuais na
Europa, como se deduz do alastrar do antissemitismo protagonizado por migrantes do Médio
Oriente. E está ainda na capacidade das sociedades europeias — já divididas por
guerras culturais e com economias relativamente estagnadas — integrarem os
recém-chegados. Uma entrada maciça e desregrada só poderia resultar em mais
guetos e em mais votos “populistas”. Nessas circunstâncias, os migrantes
correriam o risco de reproduzir involuntariamente na Europa as situações de que
fogem noutros continentes. As pequenas Somálias que agitam alguns subúrbios escandinavos não são necessariamente o
futuro, mas dão uma ideia do pior cenário possível.
Toda a gente, aliás, percebe
isso, e daí a hipocrisia dos governos europeus, que ao mesmo tempo que salvam
as suas faces humanitárias com comovidas palavras sobre os “refugiados”, pagam
ao ditador turco Erdogan e às milícias líbias para conter ao longe os ditos
refugiados. As fronteiras europeias estão hoje subcontratadas à Turquia e aos
senhores da guerra do Norte de África. Quanto à opção de reordenar o resto do
mundo com intervenções e ajudas humanitárias, basta pronunciar as palavras
Iraque, Líbia etc. Não, a questão não é mesmo nada simples, e a política das
emoções não a torna mais simples.
Título e Texto: Rui Ramos,
Observador,
22-6-2019
Curiosamente, não existe um único jornalista "investigativo" para investigar as ligações político-ideológicas-partidárias deste abnegado Messias.
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