domingo, 14 de julho de 2019

[As danações de Carina] O envesso do avesso

Carina Bratt

Como o poeta português Miguel Torga, “sinto o medo do avesso”. Melhor explicado com palavras minhas: sinto estupefato assombro de tudo o que é contrário. O contrário, na prática se sustenta por aquilo que não vejo ou que não posso tocar ou sentir, ver e usar no dia a dia, como uma calça jeans, uma calcinha, um vestido, ou um par de sapatos. O avesso é sempre um distante afastado que não se percebe o que existe na sua integridade. Como um hostil essedário destituído do que se me apresenta como uma coisa estranha, esquisita, difícil de decifrar.


O avesso, lado outro da moeda, para mim, não é só aquela blusa que se vestiu de maneira errada, ou a peça de meia trocada do pé direito quando deveria ser direcionada para o esquerdo. O avesso vai mais longe à minha concepção de vida. É uma fumaça de neblina espessa desenhando em meus sonhos, um estado mórbido de vícios redibitórios os mais variados. O oculto traz para o cotidiano, uma sacola de situações paradoxais difíceis de serem entendidas e acertadas. Situações que sempre se colocam na antítese pendendo o fiel da balança para o lado que melhor lhe interessa.

Existem (nesse oposto), distorções inconcebíveis, inaceitáveis, espantosas e anormais. Particularidades que chamaria de “adversantes da hora agá”, ou seja, tudo aquilo que nos coloca entre a cruz e a espada. Metadeados entre o padre e o confessionário, sufocados entre o sim e o não. Espremidos como azeitonas encaroçadas em vidros de conservas. Entre o querer fazer e não querer fazer, numa mistura heterogênica tão fabulosa, mas igualmente tão desvirtuada e falseada que nos tira o sentido correto na hora exata de escolhermos entre o jardim do Éden e o inferno de Dante.

O contraposto é sempre o pesadelo do desconforme. Eles não se entendem de maneira nenhuma.  Às vezes chegam às vias de fatos por picuinhas bobas, corriqueiras, que poderiam ser resolvidas se ambos, irmanados em idêntica sintonia meridiana deixassem de lado as discordâncias, ou melhor, se agregassem às ideias num só objetivo-fim, ou se tornassem unha e carne, carro e gasolina, perfume e essência. Enfim, seriam prepósteros por afinidade consanguínea. Por tudo isso eu confesso sinto receio do avesso. Notadamente daquele paranoico que não se inclina a meus caprichos.

A cada dia que vivo, essa cisma ingente se multiplica por mil. O antônimo me confunde as ideias mais brandas e banais. Me tira a concentração do sério. Me põe em risco iminente de entrar num colapso sem volta, tipo não saber distinguir o “mau”, antônimo de bom, do “mal”, dissímil de bem. De qualquer forma, continuo aqui, tentando manter o foco. Bebendo, sorvendo a goles poucos, o silêncio quase sepulcral que vem da noite lá fora e me traz o ópio das horas entediantes. Para não morrer totalmente de tédio, aproveito e espio para o meu amado.

Deitado ao meu lado, nu em pelo corpo esbelto, coberto aqui e ali, pelo brilho incandescente de uma constelação qualquer, ele dorme. Isso me anima a fechar os olhos, me aconchegar, de leve, sem fazer barulho, e imaginar, na verdade viajar ainda no mesmo trilhar de Miguel Torga.
“Sei um ninho. 
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho, tem lá dentro um passarinho
Novo”.
Título e Texto: Carina Bratt, da 17ª FLIP – Feira Literária Internacional de Paraty, Rio de Janeiro. 14-7-2019

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De um pedaço de mim que nunca morre (parte UM): A cadeira de balanço

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