Às
vezes as palavras servem de cortina para esconder o pensamento
Não me recordo quem proferiu a
sentença acima para dar o devido crédito, mas com certeza Stendhal disse algo semelhante.
Fica com o crédito.
Uma querida prima, ao compartilhar, no
facebook, um
artigo do professor Vladimir Safatle, me apontou.
O ilustrado professor desce o porrete
na recente lei de terceirização do trabalho, por ele considerada coisa de
fascistas. O artigo foi publicado pelo autor no jornal Folha de São Paulo. Expliquei
em nota publicada na minha página no Facebook, em 5-4-2017 porque examinaria o
tal artigo.
Ah! Como é bom examinar o corpo
cadavérico das ideias de um filósofo! O homem é doutorado pela Universidade de
Paris VIII e vive empoleirado nos intelectuais Lacan, Alan Badiou e Slavoj
Zizek.
Se querem saber o que pensavam esses
intelectuais, então leiam a primorosa obra de Roger Scruton “Fools, Frauds and
Firebrands – Thinkers of the New Left”, que pode ser traduzida por “Tolos,
Fraudes e Agitadores – Pensadores da Nova Esquerda. Se há uma edição
brasileira, recomendo fortemente a leitura. Irão ver a confusão do pensamento
dessa turma, principalmente da trinca a que o nosso filósofo Safatle [foto] é
chegado.
Sou cismado com os nomes que se dá a
algumas profissões intelectuais. Por exemplo, você faz filosofia e é tratado,
profissionalmente, como filósofo, ou faz “ciência” política e sai como
cientista político. Se eu fosse graduado em filosofia, morreria de acanhamento
em sair por aí me autointitulando filósofo. Isso me faz lembrar de uma das aulas-espetáculo
de Ariano Suassuna, quando ele observa que se Chimbinha, da Banda Calypso, é
considerado um gênio, o que dizer então de Beethoven? Parafraseando-o, eu diria
que se qualquer graduado em filosofia for chamado de filósofo como então
trataríamos Aristóteles?
Os que formaram a base do pensamento
filosófico ocidental (Heráclito, Sócrates, Aristóteles, Platão, Kant, Spinoza, Nietzsche,
Heidgger, Schopenhauer e muitos outros) nunca fizeram faculdade de filosofia.
Vamos ver a mais famosa faculdade de filosofia do Brasil, a da USP. Qual
filósofo saiu de lá e fez uma grande contribuição para a filosofia? Ser versado
em filosofia, conhecer a história da filosofia e todo o pensamento filosófico
fundamental não faz de ninguém um filósofo. É no máximo um erudito, ou um
simples bacharel em filosofia. Acredito seja essa a condição do professor
Safatle. Daí a ser filósofo...
Tentarei fazer um resumo dos pontos defendidos
pelo, vamos lá, filósofo Safatle. Bem verdade que ele só tratou de matéria do campo
da economia. Sendo ele um filósofo, um ser mais voltado para os problemas
transcendentais, bem sei que economia não seja a sua praia, o que não o impede
em absoluto de se espojar nessas areias.
Por sinal, um dos grandes problemas da
academia é o desconhecimento da economia e de como funciona o mercado. É
justamente aí que as soluções alvitradas pelos acadêmicos não funcionam. A vida
real e o mercado não se compadecem com as aspirações dessas pessoas tão
ilustradas e tão bem-intencionadas. Suas ideias fracassam no plano prático
porque a indumentária não está adequada ao corpo. Eles acham que uma pessoa
seja capaz de moldar as atividades produtivas e as escolhas de milhões. O corte
é um, o molde é outro. Não existe uma forma para o mercado. Toda vez que você
planeja o modelo de uma parte, você desarranja o todo. Sempre assim. Já
tentaram de tudo, tudo deu errado, mas não aprendem.
Deixemos esses aspectos de lado e mãos
à obra. Em suma, sustenta o filósofo queridinho das esquerdas, em sua coluna no
jornal Folha de São Paulo, sobre a terceirização, o seguinte: 1) achataria os
salários, intensificaria o trabalho, principalmente quando somente este ano 3,6
milhões de pessoas voltarão à pobreza; 2) estudos indicam que os trabalhadores
terceirizados ganham 24% a menos que os formais; 3) a empresa contratante não
fiscalizará o cumprimento pela empresa contratada das obrigações trabalhistas
de seus empregados; 4) o Brasil será um país em que ninguém conseguirá se
aposentar integralmente, ninguém será contratado e ninguém irá tirar férias. O
resto é a velha litania das esquerdas: monopólios, cartéis, herança, acúmulo de
riqueza pelos ricos e desigualdade de renda.
Uh! Vamos lá!
Começo com um exemplo que talvez
resuma todo o absurdo do pensamento saflateano, que deve constituir algo
rotulável de Saflateanismo.
Se você mora em Itabuna, faça uma
visita à fábrica da Nestlé; se em São Paulo, vá a Embraer; se em Salvador, vá à
Ford ou à Caraíba Metais. Não quer ir a uma fábrica, vá a um call center de uma
empresa de telefonia.
Se foi à Embraer, viu engenheiros,
técnicos de todas as especializações montando motores, asas de aviões,
quilômetros de fios, sofisticados aparelhos e sensores eletrônicos; se à Ford,
viu a linha de montagem onde homens altamente especializados e robores se
alternam, de modo que no começo da linha é colocada somente uma parte, e, lá no
final, está um carro completo e acabado; se à caraíba, viu painéis eletrônicos
com controladores manejando uma corrida de metal, saindo quase líquido dos alto
fornos; se a um call center, viu um multidão falando com o país ou com o mundo
resolvendo problemas entre uma empresa e
milhões de seus clientes.
Em todas a visitas, por mais
diferentes que sejam os objetos sociais dessas empresas, você, se estava
atento, viu algo em comum: pessoas cuidando da limpeza, da segurança, dos
restaurantes. Essas atividades, apenas exemplificadas, porque inúmeras são, não
fazem parte do core business das empresas visitadas. Não há nada em comum entre
fabricar aviões, carros, tarugos de cobre, cuidar do relacionamento da empresa
e servir cafezinho, fazer a limpeza, cuidar da segurança, ou fazer e distribuir
a comida nos restaurantes dessas empresas.
Embora soe como crítica, o Safatle nos
deu até uma boa notícia, quando diz que o salário médio dos trabalhadores das
empresas contratantes dista em 24% do salário médio dos trabalhadores das
empresas de serviços terceirizados. Eu pensava que o percentual era maior. Como
você pode comparar o trabalho de quem monta ou fabrica aviões, motores e
carros, com o trabalho de quem faz manutenção, limpeza, segurança e serviço de
restaurante das empresas contratantes.
O nosso “filósofo”, que mais está para
poeta da esquerda caviar, poderia estudar um pouco mais economia e melhor
conhecer a divisão do trabalho numa economia de livre mercado.
Aliás, há serviços terceirizados de
alta complexidade em que os trabalhadores ganham em média muito mais que os
trabalhadores das empresas contratantes. Procure saber quanto ganham operadores
de minissubmarinos, mergulhados nas profundezas de plataformas petrolíferas,
empreendimento da mais alta tecnologia, e comparem com o salário médio pago
pela Petrobrás ou qualquer outra empresa de petróleo. Verão que os prestadores
de serviço terceirizados ganham muito mais.
Mas não, o nosso herói pensador quer
que a Embraer, além de fazer avião, esfregue o chão, faça manutenção do telhado
e da pintura dos prédios de sua fábrica e cozinhe o feijão e a rabada com
agrião servidos no restaurante da fábrica.
Ele e os seus embevecidos leitores
deveriam sair da casca e correr o mundo para ver como funciona uma economia
moderna, com especializações cada vez mais fracionadas. Na linha de montagem de
uma moderna indústria como a automobilística há várias empresas trabalhando. Não
é raro um produto ter suas partes fabricadas em países diversos para ser montada
em um outro.
Nos dias que correm, quando alguém vai
fazer uma viagem dificilmente contata a empresa de aviação, os hotéis em que se
hospedará, ou a locadora do automóvel que usará. Você fará tudo isso através da
Trivago, Expedia ou Hotwire. A divisão do trabalho, por força das
especializações, não se dá somente em partes diversas do território nacional, muitas
vezes está espalhada em diversos países.
Você há de dizer que se trata de um
homem viajado, já morou e estudou na França e vive em grande centro. É verdade.
Mas não se livrou dos grilhões de um pensamento já soterrado pela experiência histórica.
Ele vê mais não enxerga. Para ele uma empresa é um só pacote, uma só realidade.
Para ele os cientistas que trabalham na Nasa e os terceirizados que servem a
comida no bandejão fazem parte de uma só realidade. O que fazer com um homem
desse? Vai continuar pela vida se queixando que é filósofo.
O argumento de que o contratante dos
serviços terceirizados deveria fiscalizar se o contratado estaria pagando os
direitos trabalhistas dos seus empregados é de uma beocidade econômica sem par.
Isso é função das autoridades públicas. Uma empresa não é fiscal de outra.
Ah, mas antes era assim! Por isso
mesmo que o choque da realidade está impondo essas mudanças, por isso mesmo que
o Brasil está sempre atolado no atraso. Foi seguindo o pensamento e o
receituário saflateanos que a vaca foi para o brejo e o Brasil deu no que deu.
Os 3,6 milhões de brasileiros que
passarão para pobreza este ano são ainda vítimas do PT, partido que ele apoiou
de cabo a rabo. Isso significa que, em alguma medida, esses pobres
trabalhadores foram saflateanamente dizimados.
O bom moço fala ainda em monopólios e
cartéis. Quem cria monopólios e cartéis? O livre mercado? Não, meus caros, quem
cria monopólios e cartéis são os governos que elegem os famosos campeões
nacionais. Por que as grandes empreiteiras mundiais não constroem no Brasil, o
que faria os custos caírem sensivelmente? Porque as nacionais amamentam partidos,
políticos e governos para impedir a concorrência estrangeira. Os cartéis
revelados pela Lava-Jato são os cartéis da sem-vergonhice estatal.
Será que o nosso herói é coerente com
o que prega. Digamos que ele acabou de dar uma aula na USP e pegou o táxi de
uma empresa para ir para casa. Então, não se esqueça, meu caro Safatle, veja se
a empresa proprietária da frota está pagando os direitos trabalhistas do
motorista que o transportou. Se não entende de economia, ao menos afine a sua
ação com o seu discurso. Que tal agitar a USP e exigir que essa universidade
pague ao bedel algo muito próximo do que paga ao doutorado professor?
Ele diz, sem nenhuma cerimônia, sem
nenhuma base factual, que o trabalhador brasileiro não mais se aposentará ou
terá férias. Países onde a idade mínima para aposentadoria é de 65 a 67 anos
estão cheios de aposentados. Por que então o Brasil não mais teria aposentados?
Em quais fatos esse senhor se arrima para dizer uma enormidade dessa? Nenhum,
claro. Não passa de simples e barata agitação para indispor os trabalhadores
contra o governo. Seria tão mais fácil para o atual governo deixar o assunto
como está e passar o problema para o próximo governo que teria de descascar um
abacaxi maior.
Dentro da filosofia safatleana, o superprotegido
trabalhador brasileiro deveria estar em situação bem melhor que o
correspondente trabalhador americano que não dispõe dessa rede protetora. Essa
filosofia de fundo de quintal, ou melhor, de cafezinho de universidade, só não
explica por que os brasileiros preferem largar tudo isso no Brasil e cair fora
para os Estados Unidos.
Não explica também por que as pessoas
não fogem para os países onde há grande igualdade de renda, como Cuba e Coreia
do Norte, ou de menor desigualdade como Índia, Paquistão, Bangladesh, ou
Etiópia. Nem vai explicar nunca. Esse é o velho e surrado discurso da esquerda,
que a New Left de Badiou e Zizek tentou colocar algumas lantejoulas para
dar ar de modernidade ao que estava embolorado.
Quando ele escreve um artigo como esse
que examinamos, só está querendo na verdade criar clima de confrontação, açular
trabalhadores contra empregadores para ver se as reformas não passam e a
situação piora para que as suas verdadeiras ideias, escondidas por uma cortina
de palavreado confuso, consigam, despercebidamente, triunfar. Se ele se
proclamar marxista e disser que gostaria que o socialismo totalitário triunfasse
não conseguiria enganar os incautos que dão crédito ao que diz, sem despenderem
qualquer esforço para passar aquilo que foi por ele dito ao crivo dos fatos. Se
tivessem a devida atenção, não sairiam por aí compartilhando saflatices.
É dessa massa de fácil manobra que se
cevam os pensadores de esquerda. Mas, para os mais atentos, por mais que o gato
esteja escondido, o rabo sempre estará visível.
Chega de saflatices!
Um bom fim de semana para todos.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, 7-4-2017
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