Todos os anos o acampamento do Bloco é uma
boa oportunidade para recordarmos que aquele partido é formado por radicais e
comunistas. Mas que têm mel e levam ao engano. Tudo porque escolhemos ser cegos
Há uns duas dias tropecei num
daqueles cartões de visita que já não se usam. Rezava assim: “Miúda de
mau-humor que estraga jantares de família com propaganda comunista do estilo
‘sabias que?’” Achei graça. Afinal quantos dirigentes do Bloco de Esquerda
ainda se assumem como comunistas? Poucos, quase nenhuns: a verdadeira natureza
do partido da Catarina, das manas Mortágua e da Marisa é o segredo mais bem
disfarçado da política portuguesa. Convém que os eleitores não saibam bem em
quem estão a votar.
Mas coitada da Mafalda Escada.
A jovem bloquista – a “miúda”, como se apresenta – tem sangue na guelra e não
resistiu a dizer ao que vinha na sua conta do Twitter. Aliás até acrescentou um detalhe
delicioso: “Para não fugir ao estereótipo, estudo na FCSH”. Para quem não
souber, a FCSH é a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, sita na Avenida de Berna, e por isso mesmo também conhecida na gíria
por “Comuna de Berna”, na verdade a mesma faculdade onde em Reunião Geral de
Alunos se aprovou a exigência de proibição de uma conferência sobre populismo de Jaime
Nogueira Pinto, criando um clima de intimidação que levaria mesmo a direção da
faculdade a cancelar o evento. Está certo, bate bem com o “estereótipo”.
Perguntarão: mas quem é
Mafalda Escada para lhe estar a dar tanta atenção? Uma das responsáveis pela
organização do acampamento de verão do Bloco, sempre um acontecimento, que este
ano foi mais contido nas temáticas – já não teve workshops sobre “desconstrução
da masculinidade tóxica” ou debates sobre “a propriedade é o roubo:
socialização dos meios de produção”, como o ano passado, ficando-se por temas mais comedidos como “Classe contra classe, até à vitória final”, “Nem
NATO nem generais” ou “pinkwashing” –, mas que mesmo é sempre uma boa montra
para entender a verdadeira natureza da nossa esquerda radical.
Nos workshops sobre “ação direta”
e “autodefesa” os jovens do Bloco preparam-se – melhor: treinam-se e são
treinados – para a ação revolucionária. Por que vão fazer a revolução? Mesmo eu
que acho que ali há poucos inocentes não penso que “a revolução” esteja para
amanhã, pelo menos aquela revolução de que estivemos muito perto nos meses
quentes de 1974 e 1975, isto é, uma revolução que subverta radicalmente o
regime. A ideia já não é a do “assalto ao Palácio de Inverno”, replicando o
gesto audacioso dos bolcheviques na Petrogrado de 1917.
Claro que podemos continuar a
fazer de conta que o Bloco é apenas uma versão um pouco mais colorida do PS,
que Francisco Louçã, com aquele ar entre o professoral e o seminarista, para
mais ilustre conselheiro de Estado e membro do conselho consultivo do Banco de
Portugal, é hoje um inofensivo trotskista reformado, e que para além do cuidado
que é preciso ter com os impostos idealizados pelas Mortáguas, males maiores
não virão dessas bandas.
Sinceramente, não creio.
O Bloco tem as origens que
tem, endoutrina os seus jovens da forma que endoutrina, ainda não pediu para se
sentar no Parlamento entre o PCP e o PS, abandonando as cadeiras mais à
esquerda, aquelas que escolheu e aquelas onde se sente confortável. Isso não o
impede se ambicionar ir mais longe, pois já perdeu o pudor e afirma claramente
que tem “capacidade técnica e política para governar”, não
escondendo a ambição de ter um dia um ministro, ou mesmo mais do que um. Na linha aliás
do que agora vimos em Espanha com os descamisados e despenteados do Podemos (mas não sem-abrigo, bem pelo contrário), que lutaram até ao fim por pastas
ministeriais no governo de Sánchez, e não eram pastas quaisquer.
Mas a verdade realmente
inquietante é parecemos estranhamente desarmados perante um discurso insinuante
que gradualmente se torna o discurso dominante, um discurso intolerante que
trata tudo o que se desvie da sua norma como “discurso de ódio”, um discurso
normativo suficientemente poderoso para condicionar a nossa própria forma de
pensar.
Quando em tempos – há pouco
mais de três anos – previ que um dia destes acordávamos nas mãos do Bloco estávamos ainda bem longe do
cenário da mais recente sondagem, mas via-se o caminho por onde íamos.
Via-se? Na verdade, podia
ver-se, mas muito poucos queriam vê-lo. Poucos queriam sequer admitir que não
houvesse apenas vantagens na chamada “normalização” da radicalidade do Bloco.
Eram os que viam apenas o verniz superficial e nunca procuravam saber mais
sobre o que pensam mesmo os dirigentes do Bloco; os que já sonhavam com um
Bloco centrista, transformado numa versão portuguesa dos Verdes alemães, sem
perceberem que os bloquistas expulsaram horrorizados os que no seu interior
defenderam essa via (como Rui Tavares ou Ana Drago); sobretudo os que não
entendem que onde o Bloco está a ganhar é na ocupação do espaço público, na
imposição da sua linguagem e da sua agenda, e que eles próprios já estão a ser
condicionados.
Um bom exemplo de como,
ideologicamente, os bloquistas são tão ou mais rígidos do que o PCP e que
muitas vezes nem sequer têm a sua flexibilidade tática foi-nos dado
recentemente pela forma como decorreu o debate da Lei de Bases do SNS, que
acabaram por ser os comunistas a encontrar uma saída capaz de satisfazer o PS.
Mas os bloquistas são como
Pedro Santana Lopes, para recuperar uma expressão em tempos usada por um
desesperado (e derrotado) João Soares: parece que têm mel. Atraem eleitores que
não fazem a menor ideia que estão a votar em comunistas – recordam-se do autorretrato
de Mafalda Escada com que abri esta crónica? – ou sequer em assumidos
revolucionários anticapitalistas. Profissionais da classe média urbana que não
imaginam deixar de ter os filhos em colégios privados e que negociaram bons
seguros de saúde até são capazes de achar que ficam melhor com a sua
consciência votando na Catarina e na Mariana.
Para onde caminhamos assim?
Para onde caminhamos se não queremos ver o caminho que percorremos? Para onde
vamos se passámos já daquele estádio em que apenas fechamos os olhos para um
outro em entrámos num sonambulismo mórbido?
Em “Os Sonâmbulos” Christopher Clark conta como os
dirigentes europeus caminharam para a I Guerra de 1914 fazendo sucessivos
cálculos errados e recusando-se a ver o mundo que os rodeava. Neste Portugal de
2019 interrogo-me quantos fizeram igualmente cálculos errados, quantos se
recusam a ver o que lhes devia entrar pelos olhos dentro e até que ponto se
caminha para um desequilíbrio do sistema político dificilmente recuperável no
curto prazo.
Será por estar um dia quente e
húmido, irrespirável, que escrevo assim? Creio que não.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
7-8-2019
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