Aparecido Raimundo de Souza
HAVIA NELE, um quase imperceptível defeito nos olhos esverdeados. Desanimado pelo
ar frio e impassível da manhã, continuou firme no seu trajeto, espremendo os
passos até desaparecer numa via pouco movimentada àquela hora e mal disfarçada
no sem-cor-da paisagem dúbia. De ambos os lados dessa ruela, edifícios os mais
diversos brotaram subitamente de uma lacuna qualquer em direção ao infinito que
se descortinava. Não obstante ao belo espetáculo de fototropismo, continuou
julgando o ambiente como enfadonho, mesmo depois de ter entrado numa torre
suntuosa de sessenta andares logo à frente e tomado um dos elevadores. Apertou
o cinquenta e um. Lá em cima, na ampla sala do seu belo e confortável
apartamento, com janelas amplas do teto ao chão, a cidade, lá embaixo, entremeada
pela alvura das nuvens ralas, descortinava uma visualidade quase
tridimensional. Estancou os passos e olhou demoradamente para a antena com uma
luz vermelha no terraço de outra torre em frente, essa mais baixa e àquela
hora, em estado de desaparecimento em vista da bruma que a encobria num abraço
surreal. Ficou a olhar para a metrópole
por uns cinco a dez minutos. Entediado, caminhou até um bar que mandara
construir ao lado do aparelho de TV e se serviu de uma cerveja gelada. Finda
essa bebida, arrancou com força brutal o fio da tomada de um velho e arcaico
toca-discos oriundo de uma coleção de muitas peças que compunham seu mobiliário
adquirido em um espaço que comercializava itens do tempo do ronca. Ato
contínuo, sem pensar em mais nada, se enforcou com o cordel dessa velha e
surrada radiola. A música silenciosa que
a tudo assistia, continuou emudecida, no ar, abobada com a agulha parada sob o
disco preto de vinil arranhado.
O sol fugiu por uma fresta do horizonte e incendiou os cabelos da linda e
esfuziante jovem recém chegada à casa dos vinte e dois anos. Diante da
indecisão resolveu ficar mais um pouco ali no hall que dava acesso à
suíte. Pensou mil vezes antes de tomar a
coragem definitiva e correr para a cama e se deitar ao lado do seu amante. O
seu parceiro acabara de sair do banho enrolado numa toalha, passou por ela sem
deixar no ar, ao menos uma esperança de possibilidade ainda que tardia ou que
pudesse ser aproveitada, a depois, como benfazeja aos prazeres do sexo. Nessa passagem, ela o seguiu com o olhar
desejoso e ainda prenhe de más intenções. Todavia, ambos não se tocaram, sequer
disseram palavras de amor. Minutos depois, ela tomou a decisão. Correu
pressurosa e convulsa. Pulou na cama redonda e espaçosa daquele hotelzinho
barato de beira de estrada, implantado dentro de uma periferia tão ordinária
que nem os pernilongos ousavam pousar para se banquetearem com os sangues
daqueles corpos recém acomodados. No ato do minuto seguinte, aconteceu o
imprevisto. Ele deu um salto, pegou uma faca que escondera debaixo do
travesseiro e a matou. Em contínuo, a violentou. Uma, duas vozes. No piscar da
desgraça seguinte, limpou a consciência na toalha imunda com a qual viera
envolto do banheiro. Sem pressa, pegou o telefone, pediu a conta. Tudo acertado,
meia hora depois trancou a suíte, entrou no carro e nunca mais foi visto.
A lágrima surgiu espessa, junto com a claridade matutina. A noite havia
sido de ouvir estrelas distantes com olhos de astrônomo e de tentar contato com
seres extra-humanos. Uma quase fuga desenfreada de fugir do agora impreciso.
Fracassara de novo, por isso, frustrado, devolveu a imaginação ao seu lugar no
bolso do pijama, dando término ao cansaço que o atormentava. No banheiro, mijou
toda a bexiga cheia com a sua ruína no interior da pia. Foi quando a moça que o
acompanhava e dormia inteiramente nua, logrou se libertar de seu sono milenar e
lhe perguntar as horas, com voz e gestos de múmia. Ele respondeu qualquer coisa
intangível, saltou da cama como um gato assustado e se dirigiu ao
banheiro. Enfiou a cara na privada e
vomitou. Em seguida, se levantou com o
estômago na boca. Antes de voltar para o lado da jovem mulher, implorou ao
espelho que o recompusesse para mais um dia em começo de gestação. Nunca soube
explicar a si mesmo, tampouco à polícia porque barbaramente assassinou a sua
linda acompanhante. O crime foi sem motivo, sem declaração plausível. Ele a
deixou caída no tapete, as partes pudentes expostas numa roda enorme de sangue.
Regressou ao banheiro e tornou a regurgitar.
Entrementes, interrompeu de novo essa via crucis, deu uma nova espiada
para o espelho e, dessa vez, aproveitou o momento do seu rosto refletido nele e
limpou a boca com a calcinha que despira dela.
Etc.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, do Rio
de Janeiro. 6-3-2020
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