Aparecido Raimundo de Souza
MEU DEUS, A QUE PONTO chegamos. Ficar em casa enfurnado, de quarentena, que loucura! Não sei
se aguentarei. Levando em conta a minha idade, sessenta e sete anos, melhor
seguir as recomendações e não dar mole. Tomo conhecimento, pelos telejornais,
que pessoas, com a minha faixa etária estão batendo as botas. Partindo daqui
com passagem só de ida. Os especialistas alegam, pelos anos vividos, que faço
parte de um tal grupo de risco. Apesar
de nunca haver participado de grupo, tampouco riscado coisa alguma, e pior, não
tendo o que fazer em casa, de extraordinário (afinal, todo santo dia caio fora
cedo e só regresso depois das dezoito), tirando isso, o resto nem vale a pena
relatar.
Sinceramente, me ver tolhido entre paredes frias e inexpressivas, parece
mais programa de índio que prevenção para não subir mais cedo para ver papai do
céu, em face dessa suposta pandemia que, até onde me fizeram acreditar,
provocou mais estragos que a bomba atômica em Hiroshima. Pelo sim, pelo não,
decidi dar uma estancada básica. Na minha idade, coçar o saco em casa, ou na
praça, não faz muita diferença. Talvez seja até mais cômodo coçar em casa. Ao
menos, voltarei a assistir filmes pornôs e a reacender as visões bestiais dos
tempos de jovem, quando espiava as mocinhas que frequentavam as missas do padre
Búlio, aos domingos. Ritinha, minha empregada do lar (comigo há seis décadas)
colocou uma máscara engraçada no rosto, e, apesar dela, continua com os molejos
em plena forma.
Pois bem. O coronavírus (se depender do papai aqui) não chegará até meus
costados. Todas as manhãs (antes de sair para a gandaia), tomava uma ducha no
capricho, embaixo do meu Corona (que ironia!), chuveiro amigo que, se não me
falha a memória, soma o mesmo tempo de serviços prestados que a Ritinha. Depois
desse reconfortante banho caprichado, trocava de roupas e me apresentava na
cozinha, para o dejejum. Com a chegada dessa praga chinesa, a rotina mudou.
Desde o primeiro momento do enclausuramento, me vi obrigado a virar chave.
Ficar no molho sem, todavia, poder abrir portas. Dos males, o melhor. Mais que
qualquer coisa, devo aproveitar o que não pode ser mudado. Assim pensando,
início de quarentena, pulei cedo, fiz a barba, demorei um pouco mais solvendo
os vapores da água quente, saboreando a chuvinha particular.
Terminada com a aparência corporal, tratei de cuidar da barriguinha. No
quinto dia da quarentena, praticamente repeti os mesmos procedimentos dos dias
anteriores. Percebi, ainda ensaboado, que outros aparelhos mais modernos,
talvez não me oferecessem os mesmos milagres que este antigo companheiro Corona
me proporciona. Uma ablução fenomenal. Melhor que ele, sem dúvida alguma, a
refeição preparada com carinho pela dócil Ritinha. Não fosse pela restrição,
não teria chegado a essa conclusão do quanto Ritinha me faz falta. Tomara que
ela nunca pense em me deixar para ir trabalhar em outra família. Nono dia de
quarentena. Descobri que moro no oitavo.
Isso esmo. No oitavo. O prédio tem doze andares e duas unidades por
pavimento. Meu apartamento, em razão disso, fronteia de postigo com um único
vizinho. Não sei quem é, mas juro que o desombrearei. Apesar de ancorado aqui,
por mais de quinze anos, se não fosse pela encurralação, jamais teria
harmonizado esses pequenos detalhes até então insignificantes. Pequenas coisas
que nos passavam despercebidas, de pronto, ganharam valor inestimável. O café
de Ritinha, como sempre, o máximo. Me esbanjei com o pão quentinho, o queijo
fatiado e a mortadela no ponto. Décimo segundo dia de quarentena. Inventei de
espiar pelo olho mágico. Jamais aberturara passagem para alguém ter acesso às
minhas dependências, deixando tudo por conta de Ritinha. Nessas espiadelas,
enquadrei o morador da frente. Aliás, os moradores. Trata-se de um casal. O
sujeito é esquisito. Fala em sussurro, e nunca ri.
A mulher dele, ao contrário, uma tetéia.
O café matinal de Ritinha desceu de forma sensacional. Décimo quinto dia
de quarentena. Meu Corona deu pane. Queimou a resistência. Ritinha chamou o
funcionário do condomínio. Ele veio, retirou a peça avariada. Ela foi até o
supermercado, adquiriu uma nova. O empregado retornou. Fez um trabalho joia.
Tudo como dantes, nos conformes. Inclusive no café preparado, a Ritinha se
esmerou no bolo de chocolate. No décimo oitavo dia da quarentena, quase defenestrei
meu aparelho de som pela janela. O troço enguiçou, cismou de rejeitar um CD
original do Belchior. Fiquei pê da vida.
Vigésimo dia da quarentena. Perdi mais tempo explicando à Ritinha que meu
café viera sem açúcar. Ao perscrutar barulho no corredor, corri para o olho
mágico. A mulher do meu contíguo, acabara de sair apressada para algum lugar.
No vigésimo primeiro dia da quarentena, a isolação passou a me incomodar. Logo
cedo, caí da cama. Aconteceu assim. Sonhei que chovia muito, e aproveitando o temporal,
resolvi transar com Maíra, uma boneca inflável que ganhara de mamãe. Pelo fato
de ter me esborrachado, provoquei uma barulheira danada. Ritinha se assustou e
correu apavorada. Quando, finalmente, escancarou o acesso, eu estava trepado,
de quatro (literalmente de quatro), em cima do guarda-roupas, tentando achar
meu guarda-chuva de cabo comprido.
Como não atinara com ele, ao descer, coloquei, de forma errônea, os pés
no estribo da escada. Inopinadamente a geringonça se fechou e veio abaixo. Até
aí, tudo às mil. No café contei o sonho à Ritinha. Teria transcorrido normal a
nossa refeição, não fosse pelo fato de, no tempo que passei sentado à mesa, ter
dado uns esporros nela. A engraçadinha, ao se lembrar do sonho e do incidente,
caia na gargalhada. Fiquei brabo e mandei a imbecilóide plantar coquinhos.
Somados vinte e três dias quarentenados, não aguentava mais transitar do quarto
para a sala, do banheiro para a cozinha, com paradas estratégicas em meu home
office. Resolvi meter os pés pelas mãos. Cismei de dar um passeio no
quarteirão. Ritinha rezou um terço, mas qual o quê. Fui.
No vigésimo quinto dia de quarentena, a campainha tocou. Atendi. Não
outra, senão a vizinha. Vista assim, de perto, sem a ajuda redonda do olho
mágico, uma tesãozinha. Queria saber da Ritinha. Disse que fora às compras. A
bela indagou, num sorriso inigualável, se eu não dispunha de uma lâmpada para
emprestar. A sua, da sala, havia pifado. Meu corpo sacolejou, no minuto em que
pedi à princesa que me seguisse até a dispensa. O que ela queria, jazia numa
caixa de papelão dentro de uma prateleira aos pedaços. Quando se abaixou, a sua
saia um pouco acima dos joelhos se elevou deixando, ao sabor da minha taradice,
uma retaguarda abundante, juntamente com as polpinhas das ancas, e, de roldão,
o reguinho do pecado enterrado no fiofó, acondicionado numa minúscula lingerie
branquinha, que faria Roberto Carlos cantar Jesus Cristo vestido num terno
vermelho.
Ao se retirar toparmos com Ritinha chegando da padaria. Descobri que o
sujeito (namorado dela), se chamava Lindulfo Celidônio. Completara setenta anos
e ela, batizada Cafiaspirina Rodela D’Alho, flutuava pelas maravilhas dos
vinte. Com seu patronímico na cabeça, saboreei, em deleites profusos, a
refeição primeva, e, em seguida, me tranquei em meu escritório. Com a chegada
do vigésimo sétimo dia da quarentena, subi para a cobertura da torre, e ensaiei
alguns exercícios na academia. Final da tarde, a campainha tocou duas vezes.
Ritinha atendeu na terceira. Apareceu, no corredor, o Lindulfo, companheiro da
Cafiaspirina. Viera devolver a lâmpada que eu cedera. Trocaram palavras
ininteligíveis, riram um bocado. Ela ofereceu um cafezinho, ele aceitou, o que
me deixou com a pulga atrás da orelha.
Ou me enganava, ou Lindulfo comia, pelas beiradas, a compridos esgares
pecaminosos a minha secretária do lar. Vinte e oito dias depois, ainda sem
meter os pés fora dos parâmetros do meu quadrado, saia do banho enrolado numa
toalha, os pensamentos longe. Para regalo meu, no hall, em pé, segurando o
marco da porta, Cafiaspirina, em papo animado com Ritinha. Ao me verem,
fingiram enrubescer. Aproveitei a deixa e sinalizei à minha secretária oferecer
à nossa visitante, um cafezinho. A danada aceitou e eu fiquei encabulado. Acho
que ela não queria nada, apenas arranjara um pretexto para colocar os olhos em
cima de mim. Tardão dessa mesma noite, voltei a sonhar que transava com Maíra,
a boneca inflável.
Desta feita, não a que me fora dada por mamãe. O brinquedo se
transformara em Cafiaspirina, e enquanto eu a açoitava, na ardência febril da
alcova em polvorosa, ela tentava inutilmente pegar meu guarda-chuva de cabo
comprido. Fomos às nuvens. Aos vinte e nove dias ostracismado, Ritinha acabara
de sair. Sozinho em casa, colei o olho no olho mágico. Vi Lindulfo depositar um
selinho em Cafiaspirina e pegar o elevador. Esperei cinco minutos. Voltei a
sondar o corredor. Antes, pela varanda, a portaria. A figura do maridão entrara
em seu carro e dera linha à pipa. Afoito, dono de mim, escancarei meu lado
audacioso e toquei a sineta da formosa. Mesma hora, como se estivesse à minha
espera, a gata abriu e, ao me ver, me puxou para dentro, como se temesse ser
flagrada por alguém chegando repentinamente.
Sem maiores receios, trocamos alguns abraços e carícias. Ela, como
sempre, sorriso faceiro na cútis inimitável, segredou que sonhara comigo desde
o dia em que fora pedir a lâmpada emprestada. “Fizemos amor” – explicou com um
risinho maroto. - “Eu ia ao paraíso e voltava” completou me abarrotando a boca
e o pescoço de beijos. Quando voltei
para meu apê, pensei com meus botões: “Imagine, essa garota deve ser louca!”.
Horas depois, me recolhia. Não sei precisar quanto tempo se passou. O fato é
que dia seguinte, no trigésimo dia da quarentena, acordei sobressaltado, suando
em bicas. Inopinadamente, no meio do meu afogueamento, sonhei que Lindulfo
apareceu do nada, abriu a porta do meu quarto querendo saber se a sua querida
mulherzinha sabia de algum morador do prédio, que tivesse, disponível, uma
escada para emprestar.
Trinta e um dias de quarentena. Ufa! Domingo. Ritinha fora visitar a mãe.
Lindulfo viajara e só daria os ares da graça quatro dias depois. Faminto, fora
do meu juízo, pulei para dentro do apartamento de Cafiaspirina e quinze minutos
depois a arrastei, aos trambolhões, para o meu. Tomamos café e sem mais
delongas nos trancamos em meus aposentos. Em questão de segundos eu fazia dela,
ou melhor, de Maíra, a boneca inflável que mamãe me dera de aniversário, se
transformar em uma mulher de carne e osso. No trigésimo terceiro dia de
quarentena, passei a discutir com meu guarda-chuva de cabo comprido. Ele queria
que o levasse para uma volta no calçadão. Maíra não gostou dessa lenga-lenga. Chorando,
deixou revelado que eu dava mais atenção à Cafiaspirina e ao guarda-chuva de
cabo comprido que a ela. Avisou que se eu não retornasse a ser o amante de
antes, iria embora e nunca mais voltaria.
Enraivecido, despachei o brinquedo para o quarto de Ritinha. Ela
dispensou alegando não ser sapatona. “Se ainda fosse um boneco homem... Tivesse
aquilo...”. Me ordenou que pegasse a
escada e recolocasse a droga da boneca em cima do guarda-roupas. No
quadragésimo dia de confinamento, Cafiaspirina e eu acordamos no meu quarto,
por volta de dez horas da manhã. Ao sairmos para o corredor que desembocava na sala,
topamos com Ritinha agarrada ao Lindulfo, no sofá de dois lugares, no maior
love. Cego de raiva, nem sei por qual motivo, parti para cima do infeliz com
meu guarda-chuva de cabo comprido acertando a cabeça do sem vergonha à altura
da testa, respingando a raiva incontida, claro, sem querer, na minha serviçal.
Foi um Deus nos acuda. Cafiaspirina passou os cinco dedos em Maíra, digo,
na boneca que eu ganhara de mamãe e mais a Ritinha garraram a gritar e a
pedirem socorro. Ambas abriram a porta da sala. Esse inesperado despertou
outros residentes que acorreram para nosso andar, celulares nas mãos, na
tentativa de filmarem e conseguirem boas selfs. Dois ou três inquilinos
intercederam em socorro metendo o bedelho e tentando desapartar a contenda, sem
alcançarem os objetivos. Alguém teve a má ideia de solicitar a polícia. Quando
a viatura chegou, eu estava em vias de fato aplicando uma série de bordoadas
nos peitos de Lindulfo, e, com a escada (que providencialmente viera, não sei
como, da dispensa até a sala),
procurando acertar as partes baixas do desgraçado, enquanto ele se
defendia objetivando estapear meu rosto
com a xícara de café que lhe fora
servida minutos atrás, pela Ritinha. Cafiaspirina grudada às minhas costas,
coitada, deixou cair, de repente, a toalha, o que levou todos os homens
presentes a emitirem um Ó... Ó... Ó... Ó... Ó em uníssono, como se repassassem
um mantra. A fuzarca acabou na delegacia, com todo os envolvidos em cana.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo, 31-3-2020
Colunas anteriores:
O CAMINHO DAS PEDRAS CERTAS
ResponderExcluir“Difícil administrar um reino onde uma parte tem medo da morte, outra tem medo da fome... e a terceira quer atear fogo no castelo.
Só espero que ao final de toda esta crise os que estão com medo da morte e os que estão com medo da fome se unam contra os que querem atear fogo no castelo”
Edílson Luiz Deitos
Mais grande teatro criado pra desviar a atenção da população para o desgoverno total das nações que apontam pra acontecimento muito maior, do qual ninguém quer falar.Pois estão de olhos fechados para a leitura do livro que é sobre todo mortal.
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