terça-feira, 5 de maio de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Dígitos pútridos

Aparecido Raimundo de Souza

ÀS VEZES A SOLIDÃO bate tão forte, tão dura, tão devastadora, que me assusta. É nesse momento que eu sinto medo. Um desconforto soturno, um vazio imenso e insalubre, que parece vir se arrastando pelo corredor das minhas horas e querer devorar o pouco que resta de mim, dentro daquilo que ainda me falta viver.

Surge, diante de meus receios, uma teia de agruras e fragosidades que não acaba mais. Me sinto, nessas horas, ímã de todos os flagelos e tormentos psiquiátricos e obsessivos, cujas lucubrações da infrutuosidade poluem o orbe do meu porvir com miasmas corrosivos. O que mais me apavora, entretanto, não é o estar aqui ao acaso das lamentações.

É ilustrar, com pinceladas incertas, o quadro do que ainda está por vir com meu desespero ainda não totalmente desperto. Pareço temperado em somas e multiplicações de todas as desgraças existentes na face da Terra. É como, se visto por outro ângulo, o fato de não saber para onde ir. O que fazer? A quem recorrer? A quem procurar para um desabafo, para simplesmente poder abrir o coração despedaçado e ouvir uma palavra amiga e usufuir de um carinho sem segundas intenções?

Na mesma sequência, deparar com um olhar que não reprove, que não aponte os erros, mas que me conforte e reanime. Nessa via de passos descomedidos, de cenários híspidos, pacóvio na ignorância beócia do meu cotidiano infeliz, o desamor do obscuro supre, de modo fugaz, a falta de algo que não consigo encontrar.

Minhas epigêneses são o útero doente, enfermo de todas as loucuras acumuladas, fecundado na incontinência dos lascivos arroubos das almas cativas da anfractuosidade, predestinadas à procriação dos meus fantasmas mais desgranhentos. Às vezes, nessa correria desentrosada, penso somente em me aconchegar num colo amigo, me aninhar em um sorriso terno, talvez me encantar envolvido num gesto vago, todavia cheio de condescendência para me dar uma sacudida e espantar as mazelas, e assim me fazer voltar correndo aos trilhos e seguir adiante.

Até algum tempo atrás, eu esbanjava saracoteios e jovialidade. Não me frustrava a decepções coaguladas na atmosfera do coração frangalhado. Me sentia feliz, por dentro e fora, mesmo sabendo estar enraizado, incluso numa realidade obumbrada, meio complexa e estravagante, sobretudo mentirosa, uma existência construída a poder de sonhos engatilhados como fios soltos de uma instalação clandestina, marchando sem rumo e norte; ao bel prazer de minhas loucuras desajuizadas.

Essas quimeras, apesar de opacas, pareciam bem vivas e pulsantes, pelo menos nas afigurações da minha mente neurastênica. Na verdade, eu me congeminava a um autismo espectral e saía do chão. Ascendia ao infinito, como se possuísse asas. Voava alto, adejava além das nuvens, como um Ícaro sem norte. E regressava ao local de onde partira como Bilac, versejando sonetos de amor.

Todavia, de repente, por não receber mais pequenas doses de um incentivo que me vinha de graça, de mão beijada, acabei esmorecendo num turbilhão de incetezas que me levaram à bancarrota da própria alma. Me vejo, desde então, na pele aflita de Fernando Pessoa, talvez objeto espúrio, pinçado por um elenco de pequenos dissabores e, pior, prestes a cair de cabeça num poço profundo sem ter como voltar à superfície.

Meu eu, entusiasmado do élan, de repente se enjaulou dentro de si mesmo e agora, pelo menos agora, não acha a porta que levará à liberdade. Com isso, a essência do meu hoje se perdeu, ancorada na consciência plena de ser nada, se divorciou, se desligou da magia do encantamento que me alimentava os pensamentos mais febris, como se uma espécie rara de frenesi angelical lhe pranteasse com uma sombra de predestinação agourenta, cobrindo toda a superficie exuberante da vontade.

De igual jetatura, o suporte que me aninhava, de roldão se esvaiu nas esquinas de uma acescência pesada, rispida, como um vírus voraz, abdomínico, que tomou conta de mim e me aprisionou com o desejo-vontade de soerguer a cabeça, chacoalhar a poeira e seguir lutando. Não faz muito, havia uma porta em que eu podia bater a hora que fosse. Ela se abriria em socorro aos meus clamores.

Por mais que uma dor incômoda qualquer insistisse em me colocar para baixo, a figura que aparecia no umbral se incorporava num rosto angelical ao tempo em que uma voz adocicada me estendia palavras carinhosas juntamente com um par de mãos aveludadas de boas-vindas, me reanimando por dentro, me acendendo por fora. Essa figura bonachã, quase platônica, tinha o dom de me escrutinar da cabeça aos pés e em seguida me pinçar inteiro, me trazer de volta, me erguer do pó.

Catava, do rés do chão, os caquinhos em que me transformara e me reconstruía por perficiente. Fazia com que meus percalços, meus receios e inquietações, numa urgência ansiosa se tornassem brandos. Eu saía de lá com a alma leve, preenchido em todos os vácuos e desvãos que haviam em mim, partia sem aquela neoplasia carcinomada, a cabeça sem afogos e martírios, levando no peito a certeza de que ao menor constrangimento poderia regressar, e novamente outras e outras palavras amigas surgiriam para consolar meus desencantos.

Essa criatura majestosa reaquecia meu ego, ensandecia meus filamentos, a ponto de espantar, para aquém de mim, os temores perniciosos, mesmo aqueles que me pareciam lucífugos, verdadeiros bichos de sete cabeças me degredando numa sensação eternal. Hoje, não sei quantos anos passados, volto à estaca zero. A solidão retroage, a pancadaria se faz mais contundente, esborcela arrasadora.

De contrapeso, também surge o medo; reaparece o velho desconforto soturno,  malgrado o vazio insalubre. Me sinto pelado como uma bola de bilhar. Sou, de novo, como dantes, um Ahasverus, réprobo deserdado da sorte. Por vezes, tenho vontade de me desprender dessas obscuridades ambíguas que me entrelaçam, fugir dessas barafundas de angústias e fabulações que me encarceram, que me definham e partir para uma démarche ainda não percorrida.

Talvez, com isso, pare de supliciar dentro de mim a minha própria ausência que a ampulheta do tempo não revelou. Queria muito, confesso; almejo a cada dia, a cada minuto, a cada respirar, buscar meu lado ainda não trazido à realidade, e dentro dela, tentar fugir dessa vertigem que se transformou na faca de lâmina afiada que me golpeia ferozmente. Quem dera viver meus dias vindouros num território físico de ternas vilegiaturas! Esmiuçar um cantinho Shangri-La, escondido dentro de um nada que não me causasse mais transtornos obsessivos.

Enfim, carecia urgentemente me deparar com alguma região longe da vida insípida e sem sentido; uma ilha, quem sabe, inesperada ao acaso, enfurnada no distante dessas tristezas e melancolias que me esfalfam a alma. E não só isso. Que igualmente me atrofiam os braços, me enfraquecem os pés, fazendo, sobretudo, do bocadinho que resta do espírito, um logro que me vergasta as forças, que me flagela o aço do osso, que me transforma prisioneiro, como se eu fosse um urubu entre cegonhas, um rato em meio a gatos de dentes vorazes, por conseguinte, a besta-fera saída de alguma espécie ainda não desvendada do Apocalipse.   
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo. 5-5-2020

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2 comentários:

  1. Poxaaa! Que texto " seu Aparecido" , heim!
    Foi fundo! Mergulhou e quase não volta , nos deixando sem folego.
    Chega a doer dentro da gente!
    Dor de gente grande, vivida , cansada.
    E de lembrança de Pessoa , encaixou como uma luva.
    Deu gosto, embora triste ,um retrato de um fim!
    Da forma que eu entendi, me fez lamentar mais a morte de Migliáccio.

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  2. Chissà se tu mi penserai
    Se con gli amici parlerai
    Per non soffrire più per me
    Ma non è facile lo sai
    A scuola non ne posso più
    E i pomeriggi senza te
    Studiare è inutile tutte le idee si affollano su te
    Non è possibile dividere la vita di noi due
    Ti prego aspettami amore mio...
    Ma illuderti non so!
    La solitudine fra noi
    Questo silenzio dentro me
    e l'inquietudine di vivere la vita senza te
    Ti prego aspettami perché
    Non posso stare senza te
    Non è possibile dividere la storia di noi due
    La solitudine fra noi
    Questo silenzio dentro me
    e l'inquietudine di vivere la vita senza te
    Ti prego aspettami perché
    Non posso stare senza te
    Non è possibile dividere la storia di noi due
    La solitudine

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