O Governo quer monitorizar o discurso de
ódio. Que a censura tem muitos nomes já se sabe. Mas este é também o folclore
para que não se pergunte: como pode o Governo ter falhado tanto?
Helena Matos
Monitorize, senhora ministra,
monitorize. Vai ser um nunca mais acabar de monitorizações. Segundo a ministra
de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva [foto], «O Governo vai monitorizar o discurso de ódio nas plataformas “online”, estando “em vias” de dar início à contratação pública de um projeto que deverá traduzir-se num barómetro mensal de acompanhamento e identificação de ‘sites’.»
Monitorize o discurso de ódio,
depois o discurso que pode ser de ódio. Depois o discurso que é só discurso.
Rapidamente ficaremos sem palavras, nas mãos dos monitores. Até o silêncio irão
monitorizar. Porque quando se começa a monitorizar nunca mais se pára e porque
enquanto a senhora ministra monitoriza e saem as listas dos monitorizados do
discurso dito de ódio e de todos os outros discursos que hão-se ser inventados,
não há espaço para perguntar: o que andou o Governo a fazer? Como pode falhar
repetidamente no essencial? Como é possível tanta descoordenação: Covid-19: Apanhar transportes públicos em Lisboa pode significar “ficar ao colo uns dos outros” para “continuar a vida normal” Portal
das Matrículas continua a dar problemas. Hospitais desmentem números da DGS...
Desde já aviso a senhora
ministra e os demais monitores que escusam de gastar o dinheiro dos
contribuintes a tentar detectar o discurso de ódio nos meus textos pois a mim o
que me interessa é o amor. Veja-se, por exemplo, a própria história
profissional da senhora ministra Mariana Vieira da Silva pois ela espelha um
grande amor: o amor do seu pai por ela foi tão grande, mas tão grande,
que Mariana Vieira da Silva integrou o mesmo governo em que o seu pai era ministro. Se
isto não é amor não sei o que será o amor. Aliás o PS é um partido
verdadeiramente amoroso: pais, filhos, maridos, mulheres… convidam-se e
nomeiam-se num espírito que só posso definir como sendo de verdadeiro amor.
Afinal, que um pai divida com os filhos o que tem não tem nada de
extraordinário. Logo só por maldade – e ódio, obviamente – se critica que o PS
reparta cargos. Não é o PS o dono do Estado? Então dá o que tem. Só uma pessoa
imbuída de ódio pode contestar esta prática tão humana, este verdadeiro gesto
de amor.
Até no detalhe de o Governo
nos ter escolhido, aos contribuintes portugueses, para pagarmos a factura de
Isabel dos Santos (outra filha amantíssima) na EFACEC eu vejo um gesto de amor,
pois como se sabe os pobres amam mais (é o que dizem os filmes e as telenovelas).
Logo, quando estivermos empobrecidos com tanta empresa estratégica para manter
e com a economia real devidamente falida, viveremos com maior intensidade
aquela imagem do amor e uma cabana.
Portugal é hoje um país
dominado pelo amor: o Tribunal Constitucional passou a amar de tal modo o
silêncio no relacionamento com o Governo que entrou para um retiro e o
presidente da República de tanto amar já nem sabe donde vem nem para onde vai e
muito menos com quem.
E como explicar, senão pelo
extraordinário amor aos cargos que ocupam, que Graça Freitas e Marta Temido
aceitem prolongar aquele número entre o grotesco e o cómico que têm em cena já
lá vão mais de quatro meses? O amor de facto move o mundo e dentro dele, num
movimento particular e único, move Portugal. Quando n’ “A Ceia dos Cardeais” o
cardeal Gonzaga disse estar a pensar “Em como é diferente o amor em
Portugal!/ O amor simplicidade, o amor delicadeza… Ai, como sabe amar a gente
portuguesa!” não imaginava que muitos anos depois essa sua frase conheceria
uma nova versão: a gente portuguesa socialista ama como mais ninguém.
Por exemplo, nos transportes
públicos apinhados em Lisboa no pós confinamento não devemos ver nem
irresponsabilidade nem incompetência, mas sim amor pelo vírus (todos merecemos
ser amados, ou não?) Aliás em matéria de transportes vivemos tempos de amor seletivo:
o governo não consegue reforçar os transportes na área de Lisboa – só para
elaborar um estudo sobre o reforço dos horários dos comboios na Linha de Sintra, explicou o ministro Pedro Nuno Santos, são necessário três meses! – mas não hesitou em aumentar
a participação do Estado na TAP, esse amor de perdição de gerações de
contribuintes portugueses. Não duvido que acabaremos a trautear “anda comigo
ver os aviões” enquanto compramos bilhetes duma qualquer low cost porque
com o que vamos pagar de impostos para a TAP não nos sobrará dinheiro para
mais. Mas não há amor sem sacrifícios, pois não?
A outra possibilidade, amorosa
também ela, é o Governo reacender a sua paixão pelo BE e, tal como em 2015
entregou aos radicais a educação e a habitação social, passar a seguir-lhes os
ditames em matéria de transportes aéreos, o que no caso da TAP passa pela sua desativação.
(Clicando aqui encontra-se toda esta estratégia
devidamente explicada pelo especialista em alterações climáticas-genro do
senhor conselheiro de Estado Francisco Louçã.
A quem achar que isto é um
exagero meu, quiçá um delírio que nunca passará à prática, recordo que andamos
há anos a normalizar o que considerámos delírios e que de delírio em delírio,
acabámos, neste momento em que a pandemia nos veio confrontar com a desproteção
sanitária e legal dos velhos institucionalizados e hospitalizados, com a
deputada Isabel Moreira a coordenar um texto para uma lei da despenalização da
eutanásia! Ainda acham delirante a reconversão das tripulações da TAP em
trabalhadores da ferrovia aplaudida pelo BE?)
A perspectiva do amor não só
muda a nossa visão sobre o mundo como esclarece o que antes não se entendia,
como é o caso da estratégia do dr. Rui Rio. Tornou-se-me claro que o dr. Rui
Rio é o exemplo perfeito do amor na oposição e de uma oposição que é um amor. O
dr. Rui Rio veio agora propor o fim dos debates quinzenais porque “O primeiro-ministro não pode passar a vida em debates quinzenais. Tem é de trabalhar”. E tão contente está Rui Rio com o
trabalho do primeiro-ministro que não só prescinde de debater com ele como
manda a sua bancada parlamentar votar e “desvotar” consoante as necessidades do
PS: o PSD era a favor da redução das prestações pagas pelas famílias nas
creches? Pois era, mas deixou de ser. Coisa mais amorosa nunca se viu!
Até na decisão do governo
inglês de não nos incluir no seu corredor de viagens eu vejo um sinal de amor.
Um amor desfasado no tempo, mas amor. Recordo que começamos o ano
preocupadíssimos com a degradação que os turistas estavam a provocar nos nossos
santos usos e costumes. Com a gentrificação provocada pelos alojamentos locais que,
garantia-se de fonte certa, tinham desalojados os habitantes
tradicionais. Era urgente legislar sobre o número de turistas que nos poderiam visitar. Ora, pensariam os ingleses que agora estaríamos
felicíssimos porque livres de turistas, os velhos centros urbanos poderiam ser
reocupados pelos seus antigos habitantes e o Algarve regressaria àqueles tempos
em que na costa só existiam pescadores e veraneava meia dúzia de famílias com
apelidos aristocráticos.
Digamos que os ingleses têm
dificuldades em interpretar as aparentes contradições do discurso amoroso e não
perceberam que os nossos “nãos” eram “sins” e que agora os amamos, suspiramos
por eles, desejamo-los… Enfim é melhor ficarmos por aqui enquanto fazemos contas ao desemprego e às falências.
Ou então adaptamos à versão inglês bêbedo, bronco mas “o nosso turista” o “Mon homme ” cantado pela Mistinguett (a versão da Sara Montiel, em espanhol é igualmente sugestiva) enquanto os
monitores do discurso machista permitirem tal desvio ao pensamento correto.
Porque discursos para monitorizar não faltam, não é senhora ministra? O esquema
é velho e resulta sempre: pega-se num bom propósito – defender a paz, combater
a fome ou o ódio – e a partir daí os autodenominados defensores desses
objetivos sentem-se autorizados a definir quem é o que está do lado certo.
Como é óbvio a coisa não fica por aqui. A seguir vêm as monitorizações, as
ameaças, as sanções… E mais discursos disto e daquilo para monitorizar.
Em conclusão, monitorize,
senhora ministra, monitorize. Eu vou continuar dedicada ao discurso do amor
pois Portugal só será um país decente quando os eleitores monitorizarem as
consequências do que aqueles que nos governam têm feito em nome do amor que nos
têm. A nós e ao país. Não sei quanto tempo mais conseguiremos suportar e
sustentar tanto amor.
Título e Texto: Helena
Matos, Observador,
5-7-2020, 7h33
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