terça-feira, 21 de julho de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Fuga letal

Aparecido Raimundo de Souza

O SUJEITO CHEGOU no trigésimo andar vindo pelas escadas. Por algum motivo, não usou nenhum dos elevadores.  Havia quatro cabines verticais à disposição, mas ele preferiu o anonimato dos corrimões e das luzes tênues das escadas empoeiradas. Ao se avolumar com a sua massa corporal no extenso do corredor, notei seu semblante ressabiado e o respirar fatigado. Num primeiro momento, olhou para todos os lados, inúmeras vezes, como se temesse a chegada inesperada de alguém.

Percebi, logo de cara, que as intenções dele não eram assaz benígnas. Quem aparece assim, do nada, suando em bicas, elegendo as escadas, para galgar trinta   pavimentos, ao invés das comodidades dos ascensores,  e o mais importante, amedrontado, se esgueirando feito cobra, pelos cantos escondidos, certamente não vinha disposto a se ajoelhar e rezar para pedir clemência à Deus. Aquele homem tinha outras intenções e eu, com toda certeza, seria, ainda que a contragosto, a testemunha ocular de um possível futuro crime hediondo prestes a acontecer.   

De onde eu estava  (por incrivel que pareça, metido no cubículo onde ficava disposta a lixeira que servia a todas as quatro suítes imensas daquele andar), ele não podia me ver, a menos que caminhasse até meu esconderijo e, de supetão, abrisse a porta por qualquer motivo não justificável. Ou, de outro modo, um morador retardatário que naquele horário resolvesse jogar seu lixo fora, surgisse sem prévio aviso e desse comigo clandestinado onde as pessoas apareciam somente para se livrarem de seus expurgos caseiros. Seria muito azar da minha parte. Bota azar nisto.

Afora isto, acrescentando a estes motivos, mais dois,  eu seria pego de calças curtas, se produzisse algum ruido estranho, tipo se deixasse cair uma agulha no chão, ou, em face do cheiro forte exalado dos detritos, espirrasse numa sequência de atchins incontroláveis. No pior dos mundos, meu Cristo Salvador, no pior dos mundos, eu seria igualmente surprezado, no flagra, de saia justa (apesar de não usar saia), se ousasse abrir a boca e gritar pelo fato de ter sido estuprado, quem sabe, por uma barata afoita que surgisse sem motivos justificáveis. 

Depois de se abanar com um jornal enrolado que retirara do bolso esquerdo, tomar fôlego e prescrutar cuidadosamente todos os cantos, de espiar pela janela de vidro inteiriçada incrustrada à parede de meia altura o movimento da avenida lá embaixo,  de sentir no rosto o brilho da lua resplandescente, puxou da cintura um chaveiro e, dele, uma mixa e se prestou a procurar  qual apartamento seria o seu destino final. Foi lá, veio cá, passou perto de mim, vagarosamente. Tremi na base. Me benzi, esparramando de qualquer jeito, o Sinal da Cruz. Se o desgraçado resolvesse abrir a lixeira.... Eu estava fu... Entretanto, o cidadão estancou a caminhada diante do 3004. Mandou vê. Em questão de segundos, com a ajuda da gazua, arreganhou a porta da unidade e entrou. Simplesmente abundou aquela residência, como se tudo ali fosse dele.

Dentro do apartamento, norteado apenas pela luz da lanterna do celular, não perdeu tempo. Abriu várias gavetas, vasculhou minuciosamente atrás das cortinas, levantou o tapete que se estendia por boa parte do chão, remexeu nos livros dispostos na estante. Deu a entender que o procurado não fora achado. Afinal, o que o sujeito tinha tanta pressa em colocar as suas garras afiadas?

Finalmente, se esparramou no sofá retrátil de doze lugares, acendeu um cigarro e se fixou a olhar para o teto, sem se preocupar com a porta principal que arrombara e deixara diametralmente aberta ao acaso de outras moradias. Me veio a cabeça que o suspeitoso não se tratava de um ladrãozinho qualquer. Longe disso. Pelo menos, não vestia a pele de um meliante comum. Embora tivesse revolvido e bolinado em tudo, deixado no seu remelexo o ambiente em desordem, de nada que viu pela frente, se apoderou para si. Foi aí que entendi a charada.

Claro, que besta quadrada! Só eu mesmo para pensar besteira. O estrangeiro não  fazia parte dos  larápios e salteadores buscando quinquilharias. Sem sombra de dúvidas, eu estava diante (em termos) de um assassino. Um facínora frio e calculista. Esperava, pois, a dona do imóvel. E eu sabia de quem se tratava.  Marcela, uma loira de tirar o sossego de qualquer coração. Andava, a beldade, pela  casa dos vinte e oito anos. A jovem morava sozinha, e, com toda certeza, ele a esperaria para lhe dar o bote e, de roldão, cabo da vida. Fiquei imaginando, com meus botões:  por que o infeliz não encostara a porta que violara?

De repente, ele saltou do sofa. Apagou o cigarro. Foi até a janela. Abriu um pouco a cortina e despachou a guimba ao sabor da escuridão. Um dos elevadores, ou mais precisamente o social parou neste momento e alguém saltou. Sabia que apeara uma pessoa, pelo barulho da porta sendo empurrada. De fato, eu não errara. Marcela havia acabado de aportar. Meu Deus, eu precisava fazer alguma coisa, no mínimo, por descargo de consciência, avisar a coitada. Jesus Cristo, eu seria testemunha de um crime brutal, cometido à revelia de uma inocente e eu não poderia sequer sair de onde estava. Aquela altura, se me delatasse estaria dando um tiro no próprio pé.


Talvez, com  certeza, me enveredasse pelo mesmo destino trágico daquela doçura que acabara de chegar  da rua, ou do trabalho, sei lá, que diferença isto faria agora? Ouví nitidamene seus passos no corredor. De fato, a moradora se achegava. Enquanto esperava e espiava, temeroso e tremendo, ela passou por mim. Quase a toquei. Senti seu calor. Capturei o cheiro forte do seu perfume, me coloquei dentro dos olhos dela, ambos direcionados para a porta de seu quadrado. Ela percebeu, então, que a sua habitação fora transgredida. Apesar diso, não parou. Caminhou devagar, quase parando, como se não tivesse pressa. Como se sentisse o perigo iminente que a espreitava, mas por alguma razão mais forte, não retrocedia, seguia em frente, os cabelos soltos, em ondas esvoaçantes descendo sedosos até a cintura fina.

Vista por traz, a espetaculosa, se transformara a meus instintos animalescos numa deusa encantada. O corpo perfeito. Seu conjunto escultural, lembrava uma princesa recém saida de um castelo encantado. Coitada! Tão nova, tão linda, tão... Seu fim se  aproximava. À alguns passos e tudo estaria acabado. Acovardado, preso ao chão, eu tremia pior que caniço em temporal. Ela parou no umbral. Acendeu a luz. Ao ver o homem, em pé, quis retroceder.  Tarde demais.

Ele se aproximou, como se voasse. Ligeiro, agarrou a formosa pelos cabelos e a puxou violentamente para si. Ela tentou se libertar. Emitiu uns “me solta, me deixa, pelo amor que você tem à sua mãe”, entre outros impropérios, que acabaram sendo abafados pela força bruta do desumano algoz. Ato contínuo, a arrastou para o sofá, como se fosse, a criatura,  uma pluma. Um beijo se fez ligeiro, depois outro, numa sofreguidão que arrepiou o mais profundo da minha alma. Apavorado, mais que apavorado, aterrorizado, espantado, terrificado, me questionei rezando o Pai Nosso. Que atitude tomar? Correr? Berrar? Buscar ajuda?  Virar homem e sair da toca e chamar a polícia ou pôr para fora o que tinha de fazer ali mesmo e não dava mais para segurar, ou meter o rabo sujo entre as pernas e me escafeder todo fedido e cagado de bosta?

Se ao menos eu tivesse trazido o celular... Eu não podia continuar estático, feito um cão assustado, acossado, perseguido e embaraçado... Precisava, carecia, necessitava  fazer algo o mais urgente possível. Tomei, então, uma atitude. Engoli o medo. Mastiguei o receio. Esmaguei meus temores. “Afinal, sou um homem ou um rato?”.  Isso não iria ficar assim. De forma alguma. Me enchi de razão. Resolvi sair do armário, digo, da lixeira. Peguei o controle e, ato  continuo, desliguei a televisão. Droga de filme chato!  Apaguei a luz da sala e fui para o meu quarto dormir.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 21-7-2020        

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6 comentários:

  1. Respostas
    1. NÃO DISSE, AMIGO PAIZOTE? PARECE QUE A "FUGA LETAL..." AGRADOU...
      Abraços
      Aparecido Raimundo de souza, de Vila Velha, no Espírito Santo

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  2. Boa tarde, meu caro e jovem Paizote
    Como sempre, bem vindo.

    Uma vez Luiz Fernando Veríssimo, autor de mais de 130 livros, me disse: “Aparecido, escreva para você, não para os outros”. Apesar do auspicioso conselho do grande mestre gaúcho (que aliás prefaciou meu livro “Ligações perigosas” edição 2002 pela Agir e 2016 pela AMC-Guedes), não segui à risca o conselho do meu amigo.

    Todavia, acredite, procuro agradar a todo mundo, menos a mim mesmo, levando em conta que nem Jesus Cristo conseguiu alcançar tal evento agradando a ele próprio. De fato, meus estilos são confusos, o que nos leva a lembrar do falecido (que Deus o tenha) Sergio Porto, ou (Stanislaw Ponte Preta).

    O que discordo do amigo, é que a certa altura do comentário, o prezado afirma que “queria mais obras gostosas de ler”. Tenho publicado algumas coisas que considero, modéstia parte, “gostosas de ler” aqui no Cão que Fuma, tipo Talho veneno, Hóspedes inesperados, Baile a caráter, A coleira do cão, Fuga letal entre outros.

    A cada dia tento melhorar, dentro do meu escasso conhecimento da língua portuguesa, como (voltando ao mestre Veríssimo em entrevista a mim concedida, ele disse: “não me formei em nada, não tenho diploma de nada”. Em verdade, amigo Paizote, sou um curioso, não escrevo politicamente correto, dai ser, na verdade, não um escritor, mas um mero ESCREVINHADOR.

    Sem mais, que o amigo continue me prestigiando. Suas intervenções, são sempre bem vindas. Em tempo: vou procurar escrever coisas mais simpáticas aos olhos e aos corações de meus leitores. Continue lendo. Me ajuda ai.
    Saúde, Graça e PAZ!
    Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo.

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  3. Perdoe se fui indelicado , mas não me encontro em alguns textos seus.
    SOU FÃ DE TEXTOS QUE BEIRAM O "NONSENSE"!
    Os textos que apenas reclamam de tudo e xingam Deus e o mundo ,não me são simpáticos.
    Mas é apenas gosto pessoal ,portanto...

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  4. Paizote, meu amigo. De forma alguma você foi indelicado. Longe de pensar tal coisa. Quem escreve precisa estar preparado para todo tipo de crítica. As suas são sempre bem recebidas e eu gosto de saber o que os meus leitores estão achando do que publico. A pedido da minha editora, no Rio de Janeiro, estou preparando um livro novo. Será o 33º. "Comédias da vida na privada", parodiando o "Comédias da vida privada", do Veríssimo. Espero que ele goste e já sinalizei que vou mandar os textos para ele dar uma espiadela, depois que todos estiverem escritos, evidentemente esperando que ele comente como fez com "Ligações perigosas". E estou pronto para levar espinafradas. Kikikikikiki. Mas vamos lá, some não. Continue deixando os seus comentários. É isso que importa: a nossa amizade. Fica na paz e com Deus.
    Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha ES

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  5. MANDA PRO FRAGA OPINAR TAMBÉM , É UM AMIGO DO VERISSIMO DE INFÂNCIA E MOREI PROXIMO A ELES. A OPINIÃO DO FRAGA É MUITO CONSIDERADA PELO VERISSIMO.
    E EU GOSTEI DO TITULO!

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