Aparecido Raimundo de Souza
DESLIGUEI CORRENDO A
TELEVISÃO, joguei o controle no sofá e saí da sala, meio que às carreiras. Entrei
no banheiro. Nele, um odor indigesto, mas preciso, regido orquestralmente por
contornos quadrados, ocupava a habitação. O espelho, colocado sobre o
lavatório, devido à pequenez do espaço, cumpria um trabalho inquisitivo,
delimitado pela película desgastada do reduzido retângulo antigo. Com tédio
comecei a me despir. Primeiro arranquei os sapatos, depois a calça jeans. Em
seguida a camisa, e, por fim, a cueca. O surdo rumor que as roupas instalavam
no minúsculo cômodo, delimitou o lugar. A um lado, o vaso sanitário emergia
sisudo, enfático e silencioso, quieto como uma beluga estéril e indefesa,
sufocada pela estreiteza de sua tundra artificial.
Finalmente, me inclinei sobre o cetáceo, na espera dos surdos sons que
inaugurariam o fluxo do meu começo de dia. Depois disso, o chuveiro frio. Uma
vez sob ele, fechei os olhos. O cubículo
se ampliou no tempo em que o vapor do meu corpo se propagava, só que um pouco
escuro e quase carente de oxigênio, reticulado em um de seus extremos pelas
sonoras estilhas aquáticas que, por momentos, pareciam inundar o piso. Como de
costume, minha cabeleira, precedida por um leve calafrio, se rendeu ante o peso
da água, formando um instantâneo casco que cercou minhas orelhas e me arrastou
a uma nova dimensão sonora.
A essa hora do dia me era difícil saber com exatidão como ou mediante o
que aquele cômodo parecia iluminado e sedoso. Possivelmente uma luz diurna,
inicial ou, talvez, se tratasse da velha lâmpada fixada a uma das paredes
laterais, cujos filamentos simulavam um pequeno inseto de âmbar ou palha. Ou
será que aquela claridade, apenas suficiente, se constituía graças à
multiplicidade de pequeninos reflexos provenientes das partículas de água que se depositavam matemática e
delicadamente sobre as paredes para aveludá-las? Não posso precisar a origem da
luz, mas sei perfeitamente que o espaço se reduzia sob a claridade fragmentada
e nebulosa.
O ar possuía um forte cheiro de urina, parecendo se materializar nas
nervuras dos mosaicos quase irreverentes em seu perfeito alinhamento. Não me
lembro se, em algum momento de minha vida, encontrei na cotidiana tarefa do
arranjo pessoal certo prazer, porém, faz tempo que a sua indiferença me ajuda a
decidir rapidamente o tom e a suavidade de minhas roupas. Renunciei sem me dar
conta de todo tipo de detalhes, pois nem sequer me permito botões ligeiramente
grandes ou de cores inusitadas. Habito familiares urdimentos que se encarregam
de definir meu contorno e apenas outorgam mínimas variações avermelhadas ou
cinzentas.
Engolir minha elegância me resulta acidental. Pode ser que isso tenha a
sua origem no aborrecimento quase amável que lentamente me cerca. Escolhi um
suéter pressentindo à frialdade das ruas. Quando cheguei, o gélido e o cheiro
de lápis me escoltaram até o lugar habitual. Ao meu redor, a luz estava quase a
nascer. As lâmpadas alógenas, através de uma lâmina de plástico cuja superfície
possuía um múltiplo desenho hexagonal, como se se tratasse de favos elétricos,
emanavam uma brancura cirúrgica. As leves cortinas ofuscavam a paisagem
metálica da cidade e apagavam os detalhes das varandas vizinhas que, como se
desarticuladas caixas de sapatos, umas sobre as outras, parecessem se
precipitar sobre a calçada.
A rigidez da cadeira, unida ao estreito espaço que havia entre esta e a
escrivaninha, me obrigou a dispor do reduzido lugar como se eu fosse um
incômodo caracol, ensimesmado e concêntrico em uma atitude voluntariamente
introspectiva que me dava apenas um pouco de segurança. Não passou despercebida
a minha chegada. Os alunos ocuparam seus lugares maquinalmente e iniciei,
ausente e triste, meu discurso cotidiano. Frequentemente me pergunto: como
experimento o passar do tempo? Meu trabalho docente me dá uma perspectiva
cíclica e vazia dos dias? Talvez seja como uma sensação de permanência em um
ponto atemporal e interrompido.
Meus interlocutores, sempre múltiplos e diversos, preconcebidos desde os
seus nomes, são na realidade, uma só presença que, ao longo dos anos, formulam
a mesma pergunta, desde o mesmo lugar, a propósito de algo que se repete até se
fazer real: "quais os componentes da sinóvia?". Essa dúvida une o
passado e o futuro e faz do presente um hábito, uma ferida única e rotineira,
ante a qual tenho logrado sentir indiferença. É por isso que para mim, março
é sempre março, mas não só isso, se não, também, o exame sobre as agenesias
e os hiatos ósseos. Carina, minha secretária, traz consigo os tarsos, segunda
parte.
Essa certeza que, como bola de bilhar, se dirige tensa e programática até
mim, me produz duas sensações: a comodidade que me lega a predição e o fastio
que essa predição implica. Quando me pergunto quem são eles, só consigo
recordar riscos que permanecem, algo assim como pernas suaves que, depois de
ligeiras vacilações, se firmam sobre a barra da cadeira em frente: como ombros
alinhados que se rendem conforme o quadro negro persiste e denuncia; como pares
de sapatos brancos, níveos. Quantas vezes devem ter se insurgido o ruído das carteiras contra o som
metálico da campainha escolar.
Mesmo questionamento, quantas canetas sucumbiram tímidas ante a dúvida?
Só tenho vivido um dia, um dia que pode ser reduzido a um momento perene.
Então, dei a aula perpétua à minha aluna, tudo pairando sob o peso luminoso das
lâmpadas e da realidade. À borda do medo, lembrei do que disse uma vez um certo
pedagogo de renome: "o professor é alguém que chega e dá resposta a uma
série de perguntas que ninguém lhe fez". E o contista? Menos mal que o
ensino não é tudo para mim: se não fosse pelo meu turno no hospital, como
clinico geral, essa frase deixaria cair impunemente seu gume sobre minha
cabeça e, de roldão, derrubaria a minha desvanecida existência medíocre.
Situar-me-ia no hall do sem sentido. Saí da sala com resignação, mas
triste, imensamente infeliz, enquanto a palidez do corredor que leva aos fundos
do necrotério me devorava firmemente. Só faltava o dia seguinte para que este
pequeno ciclo semanal terminasse. O ferrolho cedeu docilmente. A chave, cuja
superfície desenhava um baixo-relevo reticular, se ajustou à fechadura e, como
de costume, a abriu. Atravessei o umbral e nesse momento recordei algo que já
havia pensado antes: que poder nos oferecem
as coisas capazes de redimensionar uma e outra vez o mesmo espaço! Como
influem emocionalmente em nós, cada um de nossos fiéis objetos do dia a dia?
O que significam o sofá suave, a estante lúgubre e a lâmpada aérea? Agora
creio que posso lhes ser indiferente, mas se não existissem, se em algum
momento como esse deixassem de estar aqui, pressinto que minha consciência se
inclinaria, incoerente, até elas. (Que parte de nós é todas as coisas?). Um
homem ancestral pensou: "esta é minha pedra"; desde esse dia não temos
parado de construir e conquistar; só assim poder-me-ia explicar a existência do
copo e do pires, da fivela e da caneta, do teclado do computador e da Internet,
da chave e do cabide. Fechei a porta. A terrível proximidade do fim de semana
me abateu, com um golpe repentino enquanto caminhava até a cadeira.
Notei que a pequena begônia na varanda agonizava. Que ironia! Os dias
aqui no hospital têm transcorrido imperceptivelmente. Sei que esta semana vai
morrer a menina da enfermaria 22. Ela, embora jovem, veio parar aqui em face da
covid-19. Baterá as botas logo, questão de tempo, apesar dos dezoito anos
incompletos. Se não me engano é filha de
uma atriz famosa da Rede Globo. A mãe dela trabalhou naquela novela Totalmente
demais que agora está sendo reprisada.
Em compensação, nasceram duas crianças. Todavia isso não muda as coisas.
Depois de tudo, a sala de cirurgia, quase aquática, o oxidado purê de pera que
servem no refeitório e a máscara cirúrgica me silenciaram; tenho terminado por
me parecer a um de tantos corredores do hospital: desvelado, estéril e simples.
Sou isso. Hoje, recebi uma pessoa que havia sido ferida numa briga.
Por momentos a lividez de seu rosto suave, de seus lábios de amêndoa
tirou minha atenção. Quando os assistentes investiram furiosamente em suas
calças com as tesouras, que multiplicavam com força a luz da lâmpada, assomou
uma pele delicada, sob a qual se adivinhava a harmoniosa articulação dos
quadris e do fêmur; o sangue se esparzia sobre a claridade cutânea como um
desfile de suaves e doces cerejas em volta da fragmentada negrura do sexo.
Conforme consegui controlar a hemorragia, a respiração se normalizou e o
maxilar inferior foi cedendo até lhe devolver a expressão de descanso ao rosto.
Quando o condutor da maca a levou ao final da sala de observações, senti
um forte esgotamento e comecei a tirar as luvas de látex, que pareciam se
adelgaçar devido ao insistente suor de minhas mãos. Eu agonizava. Agora volto
às minhas coisas, me aferro à magia da mesa ou à presença vital e latejante da
enorme tela plana. É tarde e a chuva persiste; a noite, como um pulmão de barro
fresco, aspira o silêncio amedrontado e úmido das artérias. O banheiro, agora
livre de artifícios luminosos, exala um novo cheiro, uma fragrância de caracol
gigante. O espaço (onde me deito para descansar) aguarda com a paciência do pó
nos armazéns, quieto: no centro, o enorme
volume aberto tenta me seduzir com suas páginas de macarrão e borboleta.
Minhas roupas alegóricas caem como pétalas abatidas junto à sua escrivaninha,
de onde me observa como se fosse real, como se sua solidão pendesse, oscilando
de um fio de seda sustentado pelos meus dedos de açucena hipotética; miro a
enferma, embalsamada na pele de cera torpemente envolvida pelo pardo cachecol;
sua debilidade me invade, me desborda, o que me permite compreender o tédio
esmagador de meus dias no colégio e no hospital; lanço minha repreensão às suas
orelhas de morcego agonizante, descarrego meu ódio sobre seu cabelo de equino
assustado e a pergunta acode como bumerangue:
Por que me manténs aqui, por
que, por que te desdobras e intentas
viver de mim, de nosso inacessível coração de cebola? Por Deus, me deixe ficar
em paz e quieto, sossegado e só nesse lugar que imaginei existir num ponto bem
distante do meu eu ausente. Não me toques, não me desnudes com tuas metáforas
de pétala para evidenciar a minha ausência, para exibir meu corpo
entorpecido pela covardia de tua caneta
que não concebe o amor. Tu estás sozinha e assim continuará até o fim de seus
dias. Estás só e o advertes em meus olhos de tinta, em meus dedos de prosa, em
minha boca, que cerras de golpe com a tua assinatura mal nascida e
desgraçadamente parida às avessas.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo, 7-7-2020
Colunas anteriores:
Apa. Amei o texto.
ResponderExcluirCarina
Ca
Em Vila Velha ES