terça-feira, 7 de julho de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Talho veneno

Aparecido Raimundo de Souza

DESLIGUEI CORRENDO  A TELEVISÃO, joguei o controle no sofá  e saí da sala, meio que às carreiras. Entrei no banheiro. Nele, um odor indigesto, mas preciso, regido orquestralmente por contornos quadrados, ocupava a habitação. O espelho, colocado sobre o lavatório, devido à pequenez do espaço, cumpria um trabalho inquisitivo, delimitado pela película desgastada do reduzido retângulo antigo. Com tédio comecei a me despir. Primeiro arranquei os sapatos, depois a calça jeans. Em seguida a camisa, e, por fim, a cueca. O surdo rumor que as roupas instalavam no minúsculo cômodo, delimitou o lugar. A um lado, o vaso sanitário emergia sisudo, enfático e silencioso, quieto como uma beluga estéril e indefesa, sufocada pela estreiteza de sua tundra artificial.

Finalmente, me inclinei sobre o cetáceo, na espera dos surdos sons que inaugurariam o fluxo do meu começo de dia. Depois disso, o chuveiro frio. Uma vez sob ele,  fechei os olhos. O cubículo se ampliou no tempo em que o vapor do meu corpo se propagava, só que um pouco escuro e quase carente de oxigênio, reticulado em um de seus extremos pelas sonoras estilhas aquáticas que, por momentos, pareciam inundar o piso. Como de costume, minha cabeleira, precedida por um leve calafrio, se rendeu ante o peso da água, formando um instantâneo casco que cercou minhas orelhas e me arrastou a uma nova dimensão sonora.

A essa hora do dia me era difícil saber com exatidão como ou mediante o que aquele cômodo parecia iluminado e sedoso. Possivelmente uma luz diurna, inicial ou, talvez, se tratasse da velha lâmpada fixada a uma das paredes laterais, cujos filamentos simulavam um pequeno inseto de âmbar ou palha. Ou será que aquela claridade, apenas suficiente, se constituía graças à multiplicidade de pequeninos reflexos provenientes das partículas  de água que se depositavam matemática e delicadamente sobre as paredes para aveludá-las? Não posso precisar a origem da luz, mas sei perfeitamente que o espaço se reduzia sob a claridade fragmentada e nebulosa.

O ar possuía um forte cheiro de urina, parecendo se materializar nas nervuras dos mosaicos quase irreverentes em seu perfeito alinhamento. Não me lembro se, em algum momento de minha vida, encontrei na cotidiana tarefa do arranjo pessoal certo prazer, porém, faz tempo que a sua indiferença me ajuda a decidir rapidamente o tom e a suavidade de minhas roupas. Renunciei sem me dar conta de todo tipo de detalhes, pois nem sequer me permito botões ligeiramente grandes ou de cores inusitadas. Habito familiares urdimentos que se encarregam de definir meu contorno e apenas outorgam mínimas variações avermelhadas ou cinzentas.

Engolir minha elegância me resulta acidental. Pode ser que isso tenha a sua origem no aborrecimento quase amável que lentamente me cerca. Escolhi um suéter pressentindo à frialdade das ruas. Quando cheguei, o gélido e o cheiro de lápis me escoltaram até o lugar habitual. Ao meu redor, a luz estava quase a nascer. As lâmpadas alógenas, através de uma lâmina de plástico cuja superfície possuía um múltiplo desenho hexagonal, como se se tratasse de favos elétricos, emanavam uma brancura cirúrgica. As leves cortinas ofuscavam a paisagem metálica da cidade e apagavam os detalhes das varandas vizinhas que, como se desarticuladas caixas de sapatos, umas sobre as outras, parecessem se precipitar sobre a calçada.

A rigidez da cadeira, unida ao estreito espaço que havia entre esta e a escrivaninha, me obrigou a dispor do reduzido lugar como se eu fosse um incômodo caracol, ensimesmado e concêntrico em uma atitude voluntariamente introspectiva que me dava apenas um pouco de segurança. Não passou despercebida a minha chegada. Os alunos ocuparam seus lugares maquinalmente e iniciei, ausente e triste, meu discurso cotidiano. Frequentemente me pergunto: como experimento o passar do tempo? Meu trabalho docente me dá uma perspectiva cíclica e vazia dos dias? Talvez seja como uma sensação de permanência em um ponto atemporal e interrompido.

Meus interlocutores, sempre múltiplos e diversos, preconcebidos desde os seus nomes, são na realidade, uma só presença que, ao longo dos anos, formulam a mesma pergunta, desde o mesmo lugar, a propósito de algo que se repete até se fazer real: "quais os componentes da sinóvia?". Essa dúvida une o passado e o futuro e faz do presente um hábito, uma ferida única e rotineira, ante a qual tenho logrado sentir indiferença. É por isso que para mim,  março  é sempre março, mas não só isso, se não, também, o exame sobre as agenesias e os hiatos ósseos. Carina, minha secretária, traz consigo os tarsos, segunda parte.

Essa certeza que, como bola de bilhar, se dirige tensa e programática até mim, me produz duas sensações: a comodidade que me lega a predição e o fastio que essa predição implica. Quando me pergunto quem são eles, só consigo recordar riscos que permanecem, algo assim como pernas suaves que, depois de ligeiras vacilações, se firmam sobre a barra da cadeira em frente: como ombros alinhados que se rendem conforme o quadro negro persiste e denuncia; como pares de sapatos brancos, níveos. Quantas vezes devem ter se  insurgido o ruído das carteiras contra o som metálico da campainha escolar.

Mesmo questionamento, quantas canetas sucumbiram tímidas ante a dúvida? Só tenho vivido um dia, um dia que pode ser reduzido a um momento perene. Então, dei a aula perpétua à minha aluna, tudo pairando sob o peso luminoso das lâmpadas e da realidade. À borda do medo, lembrei do que disse uma vez um certo pedagogo de renome: "o professor é alguém que chega e dá resposta a uma série de perguntas que ninguém lhe fez". E o contista? Menos mal que o ensino não é tudo para mim: se não fosse pelo meu turno no hospital, como clinico geral, essa frase deixaria cair impunemente seu gume sobre minha cabeça  e, de roldão, derrubaria a  minha desvanecida existência medíocre.

Situar-me-ia no hall do sem sentido. Saí da sala com resignação, mas triste, imensamente infeliz, enquanto a palidez do corredor que leva aos fundos do necrotério me devorava firmemente. Só faltava o dia seguinte para que este pequeno ciclo semanal terminasse. O ferrolho cedeu docilmente. A chave, cuja superfície desenhava um baixo-relevo reticular, se ajustou à fechadura e, como de costume, a abriu. Atravessei o umbral e nesse momento recordei algo que já havia pensado antes: que poder nos oferecem  as coisas capazes de redimensionar uma e outra vez o mesmo espaço! Como influem emocionalmente em nós, cada um de nossos fiéis objetos do dia a dia?

O que significam o sofá suave, a estante lúgubre e a lâmpada aérea? Agora creio que posso lhes ser indiferente, mas se não existissem, se em algum momento como esse deixassem de estar aqui, pressinto que minha consciência se inclinaria, incoerente, até elas. (Que parte de nós é todas as coisas?). Um homem ancestral pensou: "esta é minha pedra"; desde esse dia não temos parado de construir e conquistar; só assim poder-me-ia explicar a existência do copo e do pires, da fivela e da caneta, do teclado do computador e da Internet, da chave e do cabide. Fechei a porta. A terrível proximidade do fim de semana me abateu, com um golpe repentino enquanto caminhava até a cadeira.

Notei que a pequena begônia na varanda agonizava. Que ironia! Os dias aqui no hospital têm transcorrido imperceptivelmente. Sei que esta semana vai morrer a menina da enfermaria 22. Ela, embora jovem, veio parar aqui em face da covid-19. Baterá as botas logo, questão de tempo, apesar dos dezoito anos incompletos.  Se não me engano é filha de uma atriz famosa da Rede Globo. A mãe dela trabalhou naquela novela Totalmente demais que agora está sendo reprisada.  Em compensação, nasceram duas crianças. Todavia isso não muda as coisas. Depois de tudo, a sala de cirurgia, quase aquática, o oxidado purê de pera que servem no refeitório e a máscara cirúrgica me silenciaram; tenho terminado por me parecer a um de tantos corredores do hospital: desvelado, estéril e simples. Sou isso. Hoje, recebi uma pessoa que havia sido ferida numa briga.

Por momentos a lividez de seu rosto suave, de seus lábios de amêndoa tirou minha atenção. Quando os assistentes investiram furiosamente em suas calças com as tesouras, que multiplicavam com força a luz da lâmpada, assomou uma pele delicada, sob a qual se adivinhava a harmoniosa articulação dos quadris e do fêmur; o sangue se esparzia sobre a claridade cutânea como um desfile de suaves e doces cerejas em volta da fragmentada negrura do sexo. Conforme consegui controlar a hemorragia, a respiração se normalizou e o maxilar inferior foi cedendo até lhe devolver a expressão de descanso ao rosto.

Quando o condutor da maca a levou ao final da sala de observações, senti um forte esgotamento e comecei a tirar as luvas de látex, que pareciam se adelgaçar devido ao insistente suor de minhas mãos. Eu agonizava. Agora volto às minhas coisas, me aferro à magia da mesa ou à presença vital e latejante da enorme tela plana. É tarde e a chuva persiste; a noite, como um pulmão de barro fresco, aspira o silêncio amedrontado e úmido das artérias. O banheiro, agora livre de artifícios luminosos, exala um novo cheiro, uma fragrância de caracol gigante. O espaço (onde me deito para descansar) aguarda com a paciência do pó nos armazéns, quieto: no centro, o enorme  volume aberto tenta me seduzir com suas páginas de macarrão e borboleta.

Minhas roupas alegóricas caem como pétalas abatidas junto à sua escrivaninha, de onde me observa como se fosse real, como se sua solidão pendesse, oscilando de um fio de seda sustentado pelos meus dedos de açucena hipotética; miro a enferma, embalsamada na pele de cera torpemente envolvida pelo pardo cachecol; sua debilidade me invade, me desborda, o que me permite compreender o tédio esmagador de meus dias no colégio e no hospital; lanço minha repreensão às suas orelhas de morcego agonizante, descarrego meu ódio sobre seu cabelo de equino assustado e a pergunta acode como bumerangue:

Por que me manténs aqui,  por que,  por que te desdobras e intentas viver de mim, de nosso inacessível coração de cebola? Por Deus, me deixe ficar em paz e quieto, sossegado e só nesse lugar que imaginei existir num ponto bem distante do meu eu ausente. Não me toques, não me desnudes com tuas metáforas de pétala para evidenciar a minha ausência, para exibir meu corpo entorpecido  pela covardia de tua caneta que não concebe o amor. Tu estás sozinha e assim continuará até o fim de seus dias. Estás só e o advertes em meus olhos de tinta, em meus dedos de prosa, em minha boca, que cerras de golpe com a tua assinatura mal nascida e desgraçadamente parida às avessas.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 7-7-2020

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