Assistimos quase indiferentes ao assalto
dos bárbaros, mas haverá de chegar o dia em que teremos saudades de como eram
civilizados os tempos que vivemos no nosso passado. Se ainda nos lembrarmos
deles.
José Manuel Fernandes
Os bárbaros não estão às
nossas portas porque já não existem portas. A frase não é minha, mas de um
influente colunista americano que antes recordava a definição dada por José
Ortega y Gasset do que é um bárbaro: alguém que se julga no direito de não ser
razoável, alguém que pensa que não tem de se explicar mas apenas de impor as
suas opiniões.
Olhamos à nossa volta e há de
facto muitos sinais de regresso aos tempos inquietos (1929/1932) em que o
filósofo espanhol escreveu a mais conhecida das suas obras “A Rebelião das
Massas”. E não, não me refiro à pandemia que assola o mundo sem fim à vista
quando falo de tempos inquietos, mas a esta espécie de desregramento sem
limites que tem como expoente máximo a fúria anti-estátuas nos Estados Unidos
(mas não só) e como contraponto a habitual boçalidade de Trump.
Só que agora as “massas” nas
quais os indivíduos se diluem, as multidões que os engolem, já não são formadas
por trabalhadores semiletrados, como aqueles que Mussolini ou Estaline
mobilizavam no tempo em que Ortega y Gasset escreveu o seu famoso ensaio –
agora a turbamulta que ata cordas às estátuas para as derrubar ou que se diz
“ofendida” pela simples existência de certos monumentos é constituída sobretudo
por jovens universitários. Só que em vez de terem sido habituados a pensar,
foram ensinados a discorrer sobre verdades adquiridas. As novas multidões de
hoje saem a correr de campus universitários onde já não se valoriza o diálogo
intelectual e muito menos qualquer referência moral, antes se propagam
“narrativas” e “discursos” de poder.
É por isso que de repente tudo
é posto em causa, porque é isso que pretendem os “papas” que mandam hoje nesse
mundo universitário. As estátuas, ensinam-se essas luminárias, são afinal
“involuntárias testemunhas” que dão continuidade no presente ao “poder que no
passado originou as destruições e as injustiças”. E esse poder, explicam-nos,
“é o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, três formas de poder
articuladas que dominam há quase seis séculos”. Não, não estou a inventar,
estou a citar: Boaventura Sousa Santos dixit.
Se pensarmos cinco segundos – acho que nem precisamos de chegar ao sexto segundo – percebemos que nada aqui é ciência, tudo aqui é “narrativa”, tudo aqui são slogans alinhados em função da causa do momento, que calhou ser George Floyd. Há uns meses tinha sido Greta Thunberg, haverá sempre de ser a Palestina, a Venezuela tem dias e a altermundialização já teve melhores horas. Na verdade o “patriarcado” – ou deveria estar a escrever antes “hétero-patriarcado”? – é uma aquisição recente de um léxico que tem cada vez menos a ver com qualquer discurso de racionalidade e sempre mais a ver com a obsessão revolucionária de fazer tudo de novo, do “papel em branco”, de atirar todo o passado para aquilo a que antes mais simploriamente se chamava “o caixote do lixo da história”.
No entanto, que pensar quando
lemos um colunista estabelecido do New York Times sugerir que todos os
monumentos aos Pais Fundadores dos Estados Unidos devem ser
removidos do espaço público, incluindo aqueles que celebram George Washington? O pecado
apontado é, naturalmente, o de ter possuído escravos, um pecado que entre nós
nos obrigaria a questionar Camões (ou não possuísse ele o escravo Jau) e
porventura a banir “Os Lusíadas”.
O que se esquece é aquilo que
faz de George Washington uma figura ímpar na história dos Estados Unidos e,
porventura, da Humanidade: ter feito a Revolução, ter sido eleito Presidente e
ter saído pelo seu pé do poder após dois mandatos. Quantos líderes
revolucionários, naquela época e depois, fizeram o mesmo? Poucos: a maioria
transformou-se em ditadores, algo que ainda hoje acontece. Se não o tivesse
feito provavelmente a democracia americana teria soçobrado.
Naturalmente que quando
olhamos para as figuras históricas, para os nossos heróis, só se estivermos profundamente
iludidos podemos esperar encontrar homens perfeitos – homens perfeitos pelos
critérios dos tempos em que viveram, mas sobretudo homens perfeitos pelos
critérios dos tempos em que vivemos. Mas aquilo que faz a grandeza dos heróis
são as suas virtudes, não são os seus defeitos; são os seus triunfos, raramente
são as suas derrotas.
É por isso que não vou
naturalmente celebrar os diferentes Churchills que uma longuíssima vida
pública revelou, nem esquecê-los, até porque o próprio foi um dos raros
políticos capazes de levar às últimas consequências o assumir dos seus erros
(depois do desastre da Gallipoli, na I Guerra Mundial, foi combater para as
trincheiras na Flandres). Mas o Churchill cujo exemplo quero que as gerações
futuras recordem é o que enfrentou e derrotou o nazismo e o fascismo e aquele
que depois também soube fazer frente ao comunismo, sempre em nome da liberdade.
Temos de ter consciência de
todos os nossos heróis – acho que não exagero ao escrever a palavra todos – têm
sempre um lado sombrio ou, no mínimo, polêmico. Vejamos o caso do nosso Vasco
da Gama, que faz companhia a Camões nos Jerónimos, e que é recordado por ter
comandado a armada que primeiro viajou até à Índia. O que menos conhecem é a
forma cruel como incendiou e afundou um barco com peregrinos que seguia para
Meca, matando mulheres e crianças, um ato que mesmo na época foi considerado
uma selvajaria. Vamos por isso removê-lo do seu túmulo?
Na verdade, este debate não
fez sequer sentido. Ao olharmos para o passado haverá sempre factos a que
daremos mais importância do que a outros, e essa leitura dos factos pode mudar
com o tempo e o lugar. Necessitaremos sempre de referências, de heróis e de
mitos, mesmo sabendo que há sempre um “outro lado” e procurando ter dele um
conhecimento informado. O que não precisamos é de uma cultura de ressentimento
para quem por definição tudo o que foi feito pelo homem ocidental é pecaminoso,
senão mesmo criminoso. A cultura da tal “narrativa” universitária que hoje se
impõe de forma totalitária.
É dessa cultura que nasce a
ideia de que Portugal, Lisboa, “já constitui um enorme museu do colonialismo a
céu aberto”, pois “entre rotundas, praças, ou instituições como a Sociedade de
Geografia, qualquer transeunte é repetidamente exposto a uma gramática visual
sem fim dos homens ‘heroicos’ e dos seus feitos”. Esta aproximação, típica de quem está mergulhado no veneno
acadêmico das universidades americanas, de quem acredita que História se deve
escrever sempre com letra pequena (da mesma forma que agora a palavra “Black”
passou a ser sempre escrita com letra grande nos Estados Unidos quando referida
a qualquer aspecto da comunidade ou cultura negra…), é a decorrente de uma das
“narrativas” dominantes, a da “culpa” que temos de espiar por pecados que, por
acaso nós, ocidentais, até fomos os primeiros a identificar, combater e
eliminar, como o pecado da escravidão, o pecado da discriminação, o pecado da
opressão, o pecado do subdesenvolvimento.
Não tenham por isso ilusões.
Agora descobriram as estátuas e é contra elas que dirigem a sua fúria. Muitas
dessas estátuas poucos nos dirão e, em processos democráticos, até votaríamos
pela sua remoção. Mas não nos esqueçamos da “narrativa” sempre recorrente dessa
voz também sempre omnipresente que é Boaventura Sousa Santos. Tal como noutros
tempos, no famoso poema, depois de virem pelos comunistas, vieram pelos
socialistas, depois pelos sindicalistas, depois pelos judeus, até que chegaram
ao próprio quando já não havia ninguém a quem pedir ajuda, também neste
processo de sistemático desmantelar de todas as referências intelectuais e
morais, quando um dia nos quisermos agarrar a alguma coisa verificaremos que à
nossa volta só restarão bárbaros com quem nenhum debate será possível.
Nessa altura eles ficarão com
tudo, a sociedade pertencer-lhes-á.
Nessa altura teremos saudades
de como foram civilizados os anos de paz que vivemos no nosso passado. Se ainda
nos lembrarmos deles.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
2-7-2020, 0h11
RIDICÚLO!
ResponderExcluirDERRUBAR ESTATUAS TEM MESMO EFEITO DE RASGAR FOTOS, OU QUEIMAR QUADROS DE CARAVAGGIO, PARA PROTESTAR CONTRA PEDOFILIA!
TOTAL INUTILIDADE , SALVO PARA AUTO PROMOÇÃO DE EGOS DOENTIOS SE A CULTURA PERMANECE E AS POLITICAS CONTINUAM AS MESMAS.
O RACISMO É DO HOMEM PARA O HOMEM , E CULTUA-LO PODE ATÉ SER DIVULGANDO AÇÕES SUPOSTAMENTE ANARQUISTAS!