A luta para controlar a liberdade sob o
escudo da suposta ética sanitária, humanista e solidária é o crime perfeito
Guilherme Fiuza
Depois de dar vários passos
para trás, distanciando-se de um pequeno grupo de jornalistas que o
entrevistavam sobre o resultado positivo para covid-19, Bolsonaro tirou a
máscara. Disse que era para todos poderem ver seu rosto e constatar que ele
estava bem, apesar de infectado pelo coronavírus. O alarme foi imediato.
Apesar do desfecho até
tranquilo da cena, qualquer um que estivesse assistindo pôde ouvir, em
pressentimento, os gritos que fatalmente sobreviriam. E não deu outra:
criminoso, assassino, genocida — alguns velados, outros explícitos, como o de
um deputado do PSOL, já denunciando o presidente por crime de responsabilidade,
ou de irresponsabilidade, ou algo assim.
Nesse momento em que o país
tenta se libertar da pandemia — ou pelo menos boa parte dele tenta — é urgente
parar de patinar nas incertezas científicas. Por isso é importante que o
referido deputado (não vamos tirar a máscara dele em público) calce sua ação
com demonstrações concretas da sua premissa acusatória.
Seu rosto sem
máscara pode virar estigma mesmo se você respeitar todas as regras de
distanciamento
Em ambiente não fechado, nem
aglomerado, com cerca de dez metros de distância entre a pessoa infectada e as
demais, qual seria o percurso do vírus para o contágio? Segundo a Organização
Mundial da Saúde, ele pode se projetar por cerca de 1,5 metro em caso de espirro
ou tosse. Existe até uma ala de “especialistas” pedindo à OMS que reconheça a
possibilidade de permanência do coronavírus no ar — ao que a OMS respondeu que
não há evidência científica alguma disso, mas já que eles pediram com jeitinho,
vai ver o que pode fazer.
O que se pode dizer com base
no que se sabe — e não no que se deseja — é que a chance de contágio na
situação envolvendo o presidente e os jornalistas não existe.
Ou melhor: existe, na cabeça
do deputado do PSOL — e certamente de toda a torcida para a qual ele joga. A
determinação legal para o uso da máscara tem como único objetivo evitar o
contágio. Os talibãs da epidemia querem que o Estado multe (ou eventualmente
prenda) alguém sozinho num automóvel, por exemplo, que esteja sem máscara —
mesmo que a tenha retirado para tomar um remédio. Não interessa. Flagrante é
flagrante.
Da reabertura de restaurantes
à liberação das praias para exercícios, há muita gente virando alvo de um
desvirtuamento da campanha pelo uso de máscaras. Você pode estar saindo de um
mergulho no mar, ou prestes a dar um gole de chope, respeitando todas as regras
de distanciamento, que o seu rosto sem máscara pode virar estigma. “Use máscara
— respeite a vida” é o novo slogan simplificador que pode vir a servir menos
para a pedagogia que para a patrulha. Exatamente como o “fique em casa”
frequentemente virou convite à execração moral de quem pusesse o pé na calçada.
O talibã é assim — quanto mais burra a simplificação, melhor.
Esse negócio de
acusar os outros de botar vidas em risco é complicado para quem tem morte nas
costas
No seu estilo rude e
eventualmente destrambelhado, Bolsonaro tirou a máscara contra esse tabu —
contra a evidente tentação dos “empáticos” de estigmatizar a cara limpa. A
semente autoritária do politicamente correto já era óbvia há muito tempo e
agora achou o ambiente ideal para germinar em toda sua covardia. A luta para
controlar a liberdade sob o escudo da suposta ética sanitária, humanista e
solidária é o crime perfeito. Ou quase — se as vítimas acordarem a tempo.
Esse negócio de acusar os
outros de botar vidas em risco é complicado para quem tem morte nas costas. É o
caso do referido deputado do PSOL. Ele gosta tanto de máscara que instigou uns
idiotas a se fantasiarem de black bloc e saírem perpetrando boçalidades por aí
— especialmente contra o que chamavam de “grande imprensa burguesa”. Foi assim
que dois desses pimpolhos sanguinários mataram o cinegrafista Santiago Andrade,
da Band — sob estímulo e proteção do deputado bonzinho e de seu partido humanista.
Foi esse mesmo partido que
pariu a sanha assassina de Adélio Bispo — filiado por sete anos ao PSOL, onde
ouviu exaustivamente essa pregação de destruição do “inimigo”. Foi à luta do
seu destino revolucionário e deu a famosa facada — consumando o atentado que
continua sendo encorajado por gente culta como aquele articulista da Folha,
de quem também não vamos tirar a máscara.
O quase místico
confinamento geral foi um crime contra a humanidade
A esses que têm aproveitado a
pandemia para tentar fantasiar de lógica seus instintos persecutórios, um
alerta: o custo humano do lockdown também está sendo calculado. Quem pôs vidas
em risco? Alguns postulados, como o do Nobel de Química Michael Levitt,
sustentam que a experiência do trancamento totalitário já custou mais vidas do
que a própria pandemia. O nível de adoecimento em casa por empobrecimento, por
doenças represadas e também por covid-19 é expressivo e aterrador.
Trocar o isolamento dos
vulneráveis (com livre distanciamento dos demais) por um confinamento geral,
indiscriminado e quase místico possivelmente foi um crime contra a humanidade.
E na era do registro total, os que advogaram furiosa e irresponsavelmente esse
atentado não conseguirão sumir atrás das suas máscaras.
Título, Imagem e Texto: Guilherme
Fiuza, revista Oeste, 10-7-2020, 8h33
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