Gabriel Mithá Ribeiro
Há quarenta e três anos, em agosto de 1977, Inácio de Passos publicou uma investigação jornalística elaborada ‘in situ’ nos dias do colapso do império que, como outras publicações e testemunhos, não pode continuar, banida do espaço público português, em especial das universidades, do ensino básico e secundário, da comunicação social ou do debate político. Truncar a memória de indivíduos e povos é atentar contra a sua sanidade mental e, a partir daí, abrir autoestradas de alienação e mentira. É isso que melhor define a atual III República Portuguesa.
O testemunho de Inácio de Passos começa na cidade da Beira, em Moçambique, na noite da assinatura do Acordo de Lusaca, a 7 de setembro de 1974, marco do holocausto iniciado num território ainda sob tutela colonial portuguesa em que uma minoria portuguesa branca, e não só, foi vítima do pior martírio de sempre de portugueses com laivos de genocídio às mãos de uma maioria esmagadoramente negra, martírio instigado por alguns compatriotas das vítimas, justamente os mais comprometidos com o atual regime e os que mais fizeram e fazem para limpar da história oficial da memória social as suas mãos sujas de sangue fraterno, prática imperdoável desde a Grécia Clássica entre os povos civilizados que procuram reconciliar-se com o seu próprio destino. Tal desgraça rapidamente alastrou a Angola.
Nas fundações dos pilares morais, cívicos e políticos da III República Portuguesa ficaram soterrados sem dignidade, até hoje, cadáveres, sangue, sofrimento, miséria, abandono e expropriações violentas de meio milhão de compatriotas portugueses, incluindo os nascidos em África. Se o regresso inevitável dessa verdade à consciência coletiva portuguesa não deslegitimar para todo o sempre o atual regime, mesmo o mais sanguinário regime da história passará a ser legítimo.
Tudo se agrava se acrescentarmos os milhões de cadáveres africanos e a destruição, por muitas gerações, dos novos países africanos independentes fruto de guerras civis geradas pela desordem politicamente induzida, nesses anos de 1974-1975, em Moçambique, Angola ou Guiné-Bissau.
Porque todos erramos, não é a hecatombe de sangue e violência que, em si, impediria o atual regime português de fazer parte do mundo civilizado. É apenas a reiterada supressão, ao longo de mais de quatro décadas, da verdade histórica das memórias oficiais e, consequentemente, da memória social. O totalitarismo soviético não teria feito melhor.
Que legitimidade moral possuem para julgar quem quer que seja os que se reveem na atual III República Portuguesa, e que participaram e participam ativamente na fuga à verdade histórica no jornalismo, universidades ou política, como Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro Rodrigues, António Costa, Boaventura de Sousa Santos, Rui Rio, Ana Gomes, Catarina Martins, José Pacheco Pereira, Marisa Matias, Miguel Sousa Tavares, Jerónimo de Sousa e tutti quanti?
Em nome das vítimas cuja dignidade foi abandonada ou mesmo achincalhada ao longo de mais de quarenta anos, e em nome dos Portugueses que se reveem no direito à Verdade e a um Estado que cumpra o dever de proteger os seus cidadãos em quaisquer circunstâncias, independentemente das filiações ou simpatias ideológicas e políticas dos nossos concidadãos, André Ventura e o CHEGA possuem toda a legitimidade para exigirem a refundação de um regime moral, cívica e, por isso mesmo, economicamente falido através da instituição pacífica e democrática da IV República Portuguesa.
Ler em baixo a violência contida na vivacidade da prosa de Inácio de Passos talvez sirva para, no futuro, homenagearmos a dignidade das vítimas desses momentos traumáticos através do Dia do Colono Português ou mesmo Dia do Martírio do Colono Português em África, ou algo equiparável. Seria a forma de perpetuar na memória coletiva o valor inestimável do legado civilizacional português que esses mesmos colonos deixaram no continente africano ou no Brasil que, para todo o sempre, projetará a dignidade de Portugal e dos Portugueses no mundo.
ADENDA – Leitura vivamente recomendada
Ficam breves excertos do livro de Inácio de Passos [Moçambique – A Escalada do Terror, Queluz, Literal, 1977] sobre o que se passou na Beira, Quelimane, Angónia/Tete ou Lourenço Marques/Maputo, em Moçambique, entre 1974 e 1976, cuja leitura recomendo vivamente.
«A redação [do “Notícias da Beira”] estava superlotada. (…) O Heleodoro
Baptista, um mestiço da Zambézia, espalhador de propagandas comunistas de
duvidosa sinceridade; o Jorge Figueiredo Jorge, português maoísta; o Armindo de
Sousa, negro zambeziano; o José Rui Cunha, repórter sem política; o Castro
Lobo, comunista e militante da Frelimo, mais tarde um dos chefões da Polícia de
Investigação Criminal (P.I.C.) em Quelimane, e autor da maioria das
perseguições e assassinatos de que foram vítimas bons portugueses. (…) É preciso
lembrar que este grupo de jornalistas (…) saneou a administração do jornal,
passando a empresa a ser administrada por uma comissão de trabalhadores. (…) A
maioria dessa nova escola do jornalismo moçambicano era composta por rapazes
portugueses, vindos em criança para Moçambique (…). Os mais diretos
colaboradores da imprensa moçambicana do tempo de Marcello Caetano apareceram
como agressivos defensores da Frelimo, sujeitando-se às mais escabrosas
traições ao povo português para agradarem ao Partido. (…) Os manifestantes
abandonaram as viaturas e concentraram-se em frente da redação. (…) Jorge Figueiredo Jorge atrevera-se, no
seu entusiástico maoísmo despoletado, a amesquinhar e ridicularizar a cultura
portuguesa, atitude que Samora Machel tomaria muitas vezes depois. Era
necessário agredir de qualquer modo, e creio que pouco do que existe em
Portugal se esquivou às seringadelas de veneno dos seus escritos. E o que por
ele foi poupado não teve a mesma sorte na prosa do Heleodoro Baptista e do
Castro Lobo.
A atitude destes
jornalistas, seguida mais medrosamente por outros, espantava os portugueses [em Moçambique]. Eles tinham conhecimento das palavras de Eduardo Mondlane
[assassinado em 1969] (…): “O povo
português deve compreender que o povo moçambicano é um povo fraterno. Nós,
moçambicanos, nada temos contra o povo português nem contra a cultura
portuguesa. Ao contrário.” Samora Machel, seu seguidor na presidência da
Frelimo, discursando no Norte no seu primeiro contacto com as populações do
Niassa, diria que a cultura portuguesa “começa às dez da noite e termina de
madrugada. É uma cultura de cabarés, de álcool e de prostituição”. (…)
A resposta ao apelo de Mário
Ferro [jornalista
português] não se fez esperar, e, por
ordens, da Frelimo, é detido poucos dias depois um agricultor [português
residente na Angónia, província de Tete] de
nome António Ferreira Abreu. Transportado sob prisão para Lourenço Marques foi
ali enclausurado em regime incomunicável. Sua mulher e filha – uma criança
doente – sofreram igual sorte. A solução chegou para todos com a expulsão de
Moçambique, após haverem sofrido as mais desumanas humilhações e maus tratos. A
acusação baseou-se em “crime de sabotagem económica”, mas o acusado não foi
julgado em nenhum tribunal. (…) Prosseguindo o programa de Mário Ferro, algum
tempo decorrido é encarcerada a totalidade dos agricultores portugueses [da
Angónia] e a maioria dos comerciantes,
nestes incluindo cinco moçambicanos. (…)
O ódio fervilhava nos
gatilhos das armas automáticas e as cenas da mais desumana bestialidade iam-se
registando nos bairros limítrofes da capital [Lourenço Marques/Maputo] e em todas as artérias do seu acesso. (…) Recordo com raiva o relato
de um homem: Sua mulher, licenciada em Farmácia, exercia a sua profissão na
Matola, regressando a casa, em Lourenço Marques, todos os dias ao fim da tarde.
Temerosa pelos relatos de atrocidades, que ouvira de gente assustada, decidiu
regressar mais cedo, telefonando primeiramente ao marido a dar conta da sua resolução.
O marido, também temeroso, foi ao seu encontro, a tempo de ouvir os gritos
lancinantes da mulher dentro do automóvel em chamas, cercado por centenas de
assassinos que gozavam o espetáculo em diabólica orgia. Ele fugiu levando nos
ouvidos como música do mais trágico drama os últimos gritos de desespero e
morte da mulher incinerada viva.
Ela fora apenas uma
portuguesa entre centenas, entre milhares de vítimas – o número nunca foi
divulgado pela imprensa moçambicana – sacrificadas como ela. Ela fora uma das
colonizadoras, uma das fascistas, um dos monstros a destruir, que a imprensa
comunista fabricava diariamente nas suas edições dirigidas por portugueses
traidores, por virtuosos intelectuais ultrarrevolucionários.
Lembro, também, a descrição
de um homem que perdeu toda a família: Estava em Lourenço Marques e, mal tomou
conhecimento das trágicas ocorrências, dirigiu-se para a sua casa nos
subúrbios, pedindo proteção a uma força militar portuguesa, que o escoltou até
à residência. Todas as portas estavam arrombadas. Junto à escada de acesso
jazia a sua filha, de catorze anos, numa poça de sangue, degolada e com os
membros decepados. Tinha sido violentada antes de morrer. Nos compartimentos
interiores espalhavam-se os corpos de seus irmãos e tios, vítimas das mais
desumanas mutilações. (…)
Que importavam as afirmações
de testemunhas oculares, de sobreviventes, que viram homens, armados e fardados
com camuflados da Frelimo, assassinando pessoas indefesas e saqueando
residências, embriagados no mesmo álcool sanguinário? Que importava – ou
continua a importar tudo isto – se os comunicados oficiais e os artigos de
Fernando [Leite] Couto e de seu filho Fernando Amado Couto [pai
e irmão de Mia Couto, também jornalista],
dois jornalistas portugueses apregoadores das virtudes frelimistas e dos dons
de líder de Samora Moisés Machel, afirmaram não ser verdade, nas páginas do
“Notícias” [de Lourenço Marques/Maputo]?
Não se passara nada de anormal em Moçambique? Mas nada, absolutamente nada. (…)
Um dos indivíduos que mais vezes me mandava calar era o dr. B., um advogado. Homem idoso, honesto. Reside em Moçambique há mais de trinta anos e não possui fortuna nem economias. Aderiu à primeira hora à Frelimo (…). Foi saneado por informação de uma jovem professora primária, inexperiente, mas frelimista, presente sempre à abertura de latrinas e às machambas do povo, com a sua enxada oportunista que a levou, de um dia para o outro, de incompetente professora recém-saída do Magistério a inspetora provincial dos Serviços de Educação e membro influente do Departamento de Educação e Cultura. O seu nome interessa para quando for feita a biografia dos traidores de Portugal – é portuguesa, e cruzará, qualquer dia, contigo em Lisboa. Trata-se de Fernanda La Salette Teixeira [em 2015, chegou a chefe de gabinete da Primeira-dama da República de Moçambique].»
Título: Gabriel Mithá Ribeiro, 20-10-2020
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