domingo, 25 de outubro de 2020

Ideias, intuição moral e compromisso ideológico

Ninguém se transforma num demônio apenas porque leu um livro ou porque estabeleceu um pacto satânico com uma corrente política


Bruno Garschagen 

Lembro ainda hoje do meu espanto ao ouvir o professor João Carlos Espada, numa das primeiras aulas do mestrado em Ciência Política no Instituto de Estudos da Universidade Católica Portuguesa, citar o seguinte trecho de um texto de Anthony Quinton, no The Oxford Illustrated History of Western Philosophy (Oxford University Press, 1994): “A importação das ideias de John Locke teve na França efeito similar ao do álcool num estômago vazio”. 

Como é possível que as ideias de um mesmo autor possam ter fundamentado dois eventos históricos tão profundamente distintos quanto a revolução gloriosa e a revolução francesa? 

E aqui temos elementos que ajudam a explicar comportamentos similares em eventos históricos decisivos: raciocínio moral, cultura política e a experiência do indivíduo na sociedade num dado momento. Numa situação de normalidade, uma sociedade civilizada não permitiria os horrores da revolução francesa, da revolução russa, do nazismo alemão. Rupturas políticas têm ideologias como pano de fundo, mas outras razões como origem. 

Reduzir escolhas e atos individuais a posições políticas atrapalha a compreensão adequada dos fenômenos políticos. Essa visão limitada a respeito do problema leva a uma falsa impressão de que as ideias são a origem e não uma das causas de atos abomináveis, como, para usar um exemplo recente, o incêndio criminoso de duas igrejas no Chile, no domingo passado. 

O que a experiência concreta e estudos de comportamento político e psicologia moral revelam é que ideologias são, muitas vezes, o combustível ou a justificativa para tais atos, não sua causa. Mesmo jovens revolucionários que nunca leram uma linha de seus ídolos políticos foram seduzidos por uma percepção do que seria o núcleo ideológico ao qual se alinharam. 

Só ideias não transformam um cidadão pacífico num jacobino

Muitos indivíduos se tornam militantes pela indignação diante de algum problema social grave (pobreza) ou de violência contra pessoas de um dado grupo (mulheres, homossexuais etc.). E é a intuição moral, termo utilizado pelo psicólogo Jonathan Haidt no livro The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (Vintage Books, 2013), que vai aproximá-los de correntes políticas de esquerda, de centro, de direita. 

Outros indivíduos podem se tornar cruéis em razão de terríveis experiências de vida. Sua revolta, ressentimento, violência acabam sendo extravasados por meio da atuação política. 

Como mostra Haidt em seu livro, só ideias não transformam um cidadão pacífico num jacobino, num bolchevique, num revolucionário que usa a violência como método político. É algo que esse indivíduo tem interiormente junto com a realidade que o cerca o que permite o compromisso ideológico e sua ação política. 

Ninguém se transforma num demônio apenas porque leu um livro ou porque estabeleceu um pacto satânico com uma ideologia política. O demônio que essa pessoa traz dentro de si é, às vezes, despertado pelo envolvimento com o grupo político com o qual se identifica e pelo qual foi acolhido. Esse sentido de pertencimento, de identidade tribal, de abrigo social, é elemento poderoso no direcionamento de comportamentos. As ideias políticas entram com a função de explicar e legitimar atos dentro de um esquema teórico aparentemente perfeito que enquadra a realidade à ideologia. 

Na maioria dos casos, o compromisso ideológico nasce de características individuais e dos sentimentos — não de uma opção exclusivamente racional. Adolf Hitler não se revelou um monstro em razão de seu antissemitismo. Fosse assim, todos os antissemitas na Europa teriam feito algo similar em diferentes países do continente. 

O “crente político” pode abandonar a causa revolucionária por razões morais

É por isso que, quanto mais profundo o vínculo, mais difícil é o rompimento e ele não se dá por vias teóricas, mas por algum tipo de trauma, de desilusão, como conta Paul Hollander no livro O Fim do Compromisso: Intelectuais, Revolucionários e Moralidade Política (Colares: Editora Pedra da Lua, 2008). 

Hollander mostra que, nos países comunistas, os defensores fervorosos do regime tinham uma “capacidade elástica de tolerar ou recusar determinadas ações políticas ou transgressões morais” e que essa tolerância era determinada por aquilo que servia ou não ao partido e ao projeto de poder. 

Esse tipo de crente político, segundo Hollander, acredita fervorosamente que:

1) suas convicções e compromissos merecem todo o apoio e dedicação;

2) os fins pretendidos são realizáveis e os meios usados em sua procura, quaisquer que sejam, são aceitáveis e moralmente perfeitos;

3) sua postura tem sempre de ser a de proteger o objetivo final contra quaisquer eventuais ameaças e ataques. 

A mudança individual que permite o rompimento com a ideologia está relacionada, de acordo com o autor, à “capacidade variável de tolerar ou recusar determinadas ações políticas ou transgressões morais”. A relação entre crenças políticas, suas finalidades e os critérios morais individuais é configurada ou estabelecida pelo limiar moral. Se isso não é modificado, o vínculo se mantém. 

Nos países comunistas, as fontes e a natureza da desilusão com os regimes só acontecem “quando os crentes [políticos] concluem que as suas crenças e compromissos já não merecem o seu apoio e dedicação, que os fins pretendidos são irrealizáveis e os meios usados na sua procura são inaceitáveis e moralmente imperfeitos”. Válidos também para países não comunistas, os exemplos apresentados por Hollander mostram que o fim do compromisso só foi possível depois de uma dolorosa, hesitante e gradual experiência de desilusão política. 

Ideologias revolucionárias devem ser expostas, explicadas, criticadas, desmascaradas, rejeitadas, mas só esse trabalho não provocará mudanças naqueles que já estabeleceram o vínculo político. Talvez a forma mais eficiente de ajudar uma pessoa comprometida ideologicamente seja usar uma argumentação moral em vez de uma argumentação política. Caso contrário, o resultado poderá ser o inverso do pretendido: aprofundar — em vez de quebrar — o compromisso. 

Título e Texto: Bruno Garschagen, revista Oeste, 23-10-2020, 10h19 

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