Aparecido
Raimundo de Souza
UM
DIA DECIDI IR EMBORA. Sair por aí, sem destino, buscando sonhos e aventuras que
nunca conseguiria realizar se continuasse trancafiado dentro de meu
apartamento. Queria ver gente nova ao
meu redor, atentar para coisas diferentes acontecendo em outras ruas, praças e cidades.
Mudar os ares, as paisagens repetitivas e esquecer, de alguma maneira, os dias
sofridos e cheios de agonias e tristezas, tal como se fosse um velho (como se
proclama à boca miúda) dobrando o Cabo da Boa Esperança, olhos sem luz, os
ombros derribados e enfraquecidos, as carnes frágeis e carcomidas pelas muxibas
contraídas com o peso danoso dos anos.
Almejava esquecer também os amigos de
toda hora, os falsos amores que juravam mentiras com respingos de beijos de
novelas. Sonhava viver aventuras como as
que lia em livros cheios de heróis e homens valentes. Precisava atravessar os
umbrais da porta da sala, subir vales e montanhas, flutuar como um duende,
descer morros, enveredar por sendas obscuras, parar final de tarde, à beira de
uma montanha encantada e me sentar sem pressa, horas depois, à margem de um rio
que cantasse o murmurar dos segredos de suas águas só para mim.
Minha alma, acastelada numa ampulheta,
compactava meu tempo a ser vivido. Todo meu ser, aprisionado numa vertigem
incontrolável, carecia de espaços maiores. Necessitava se desprender do corpo
físico e contemplar matas e florestas, desvendar segredos ocultos entre os
nimbos de suas sombras. Sentir o azul que existia lá em cima, no céu, aquele
azul sem manchas, sem deformidades, sem borbulhas, cujo infinito, exatamente
por ser intransponível, da janela do meu apartamento me seviciava as vistas não
me permitindo enxergar além, como sempre tivera vontade.
Então tomei coragem e desarraiguei. Por
todas essas razões e outras que não pontilhei, cortei o cordão umbilical e
parti. Peguei as coisas de maior necessidade ao meu indispensável e me flagrei
em marcha acirrada, persistente e implacável. No mesmo gume da faca, contente e
gozoso, por ter tomado a decisão que achei a mais acertada para aquele momento
que considerei infinitamente mágico e surreal. Não pensei e nem passou pela
cabeça que, agindo daquela forma, estivesse olvidando de todos. Não estava.
Apenas triunfava sobre meus destroços fugindo, arredio dos meus agouros mais
assombrosos.
Nunca cogitei verdadeiramente me
apartar, principalmente das raízes que me prendiam tanto tempo num só lugar.
Que me aliançavam, cativo, submisso, arraigado, chumbado num espaço que não me
pertencia. Em absoluto, confesso! Jamais cogitei tal condição. Apenas busquei
veementemente me ajustar dentro de outro estado mais ameno e hospedeiro,
urbanizado e investido num âmago espirituoso que não me trouxesse sofrimentos
ou que me desaferrolhasse da minha identidade e junto, de roldão, me degradasse
as digitais.
De certa forma, consegui abarcar meus
objetivos. Hoje, distante do meu antigo mundinho, me pego, às vezes, apatetado,
tentando achar, em algum embaraço adormecido, o lugar onde me extraviei. Em que
ponto da estrada longa e cansativa, exatamente em que lugar da marcha
desvairada deixei a vida parada, lancetada, rasgada, rachada, para enfrentar a
decisão compromissada de fugir das sarissas pontiagudas das fatalidades e
descalabros que me flagelavam? Em que altura optei por seguir em frente, correr
atrás da busca insana, obstinada e babélica, de pescar sonhos, apanhar quimeras
com as mãos vazias e restaurar anseios que nunca se concretizariam?! Dou graças
de nunca ter logrado tal intento.
Rachei fora, é verdade. Viajei
extraindo, esquecendo, criando mágoas, deixando pessoas, seres que me amavam,
que me odiavam. Mesmo não tendo todos meus sonhos realizados, abalei em frente.
Larguei o medo, estanquei o receio, parti, descumprindo o périplo. Por essa
razão, nesta hora, aqui onde estou, sou feliz. Não só isso. Pego e me vejo
plenamente satisfeito. Se tivesse
ficado, bem, se tivesse ficado naquele lugar de outrora, constrangido entre o
partir e o ficar, reprimido entre o remoinho do talvez, ou do quem sabe, não me
sentisse réprobo e imbecilizado, ou quem sabe, por outra, morresse por dentro
um pouco do que sou e, sob nenhuma circunstancia me presenteasse com o bafejo
do arrojo de encarar o espelho e admirar a tez que ali me espreita, renovada,
sorridente, com a conceituação forte e aberta em pleno regozijo de satisfação e
deleite.
Tivesse me acovardado, agora, nesse
momento, não seria apenas um ser incompleto, truncado, mutilado, um esqueleto
abandonado, ponto de apoio a noiados e desocupados que se concentrariam por
cima de meus despojos como ratos famintos em busca de uma nova esperança para
continuar respirando. Seria um merda, um desgraçado, um ser vazio. Incompleto.
Oco. Quem sabe, me deparasse comigo, vagando contratempado por porões
escabrosos, ínvias vielas, como féretro pó, insepultas borralhas, resíduos
consumados. Talvez assemelhado ao eterno e soberbo Fantasma da Ópera, entre
hermas e bustos de figuras grotescas, me catrafilasse no encalço de uma
igualmente meiga e caliente Christine.
Título e texto: Aparecido Raimundo
de Souza, jornalista. De Cachoeiro de Itapemirim no Espírito Santo.
9-1-2018
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Parabéns! Ainda bem que você "agarrou" com "garra" a oportunidade que lhe surgiu e hoje faz o que gosta e por isso mesmo é "bem sucedido". Sonhos de muitos e que poucos conseguem, justamente por manterem-se aprisionados as suas "raízes", por medo ou preconceitos diversos.
ResponderExcluir👏👏👏👏👏👏sensacional. Amei. Uma delícia de se ler. Sucesso sempre! Feliz Ano Novo.
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