Foi  serralheiro e funcionário público. Comunista. Amado e detestado. Começou a viver  da escrita depois dos 50 anos. Conheceu Pilar já sexagenário. Recebeu o Nobel -  o único dado à língua portuguesa - aos 76 anos. Partiu ontem. Sem "nenhuma  esperança". 
Por Adelino Gomes 
José Saramago, 87 anos,  único escritor de língua portuguesa a quem foi atribuído o Nobel da Literatura,  morreu ontem, ao início da tarde, na sua casa da ilha de Lanzarote, onde vivia  com a mulher, Pilar del Rio, desde que se auto-exilara, em 1993, depois de o  Governo português riscar o seu nome da lista dos candidatos ao Prémio Literário  Europeu. 
Visivelmente fragilizado desde o Verão de 2007, devido a doença  cancerosa, morreu na sequência de "múltipla falha orgânica", segundo a Fundação  José Saramago.
O corpo chegou ontem às 12h30 ao Aeroporto de Figo Maduro,  em Lisboa, e foi cremado hoje. O Governo decretou dois dias de luto nacional.  Num documentário de Alberto Serra, estreado em fins de 2008, Saramago exprimira  o desejo de que as suas cinzas fossem colocadas, sem qualquer inscrição, debaixo  de uma pedra larga do jardim da casa de Lanzarote. Terá mudado posteriormente  este desejo, disse o administrador da Fundação Saramago, José Sucena, ao  PÚBLICO. 
Nas entrevistas que deu nos anos pós-Nobel, disse que sairia  "desta merda de mundo" sem "nenhuma es- perança" e profundamente dorido por  saber que não terá "outra vida". Mas com a satisfação de que "disse o que  queria, como queria, quando queria", ainda que "com algumas in- compreensões" de  parte dos seus contemporâneos. 
Não partiu, contudo, apenas ele. "Quando  me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei, de mão dada, com essa criança  que fui", disse em 2006, referindo-se aos primeiros 14 anos de vida,  profundamente ligados à aldeia natal, Azinhaga do Ribatejo. 
Derradeira  provocação
O seu último romance publicado em vida, Caim (2009),  foi escrito "numa espécie de transe", em quatro meses.
Além da  personagem bíblica que lhe dá título, tem como protagonistas nada menos do que  a humanidade e o próprio Deus. A ideia surgira-lhe há muitos anos. As  circunstâncias (ou a sua vontade?) tornaram-no no seu último livro. Como se de  uma derradeira provocação se tratasse: "Que Deus mande a Abraão matar o seu  filho Isaac para provar a sua fé, só isto deveria apagar da nossa cabeça a ideia  de Deus" (PÚBLICO de 2/9/2009).
Apesar de visivelmente fragilizado pela  doença, desde 2007, publicará ainda A Viagem do Elefante, O  Caderno e O Caderno II - estes últimos constituídos por textos  escritos até Novembro de 2009 no seu blogue, blog.josesaramago.org (dois  milhões de visitas nos primeiros nove meses).
Em contraste com a recepção  fria aos oito livros publicados depois do Nobel da Literatura, em 1998, o seu  anterior livro, A Viagem do Elefante (2008), foi bem acolhido pela  crítica portuguesa.
A doença interrompeu a escrita desta obra cerca da  página 40, mas a sua capacidade criativa pareceu redobrar nos anos que se  seguiram, ainda que o corpo passasse a exibir, dela, marcas  profundas.
Individual e universal
José Saramago publicou 46 livros  (16 romances, além de poesia, teatro, contos, crónicas, viagem, memória e  diários), 41 dos quais na Editorial Caminho, comprada pelo Grupo Le-ya em 2007.  Foi autor ainda dos libretos de três óperas. 
A sua obra está traduzida  em 42 línguas de 53 países. 
Não existem números seguros, mas dados  apurados pelo PÚBLICO junto da editora, com base apenas nalguns países e  regiões, apontam para próximo de 10 milhões de exemplares vendidos: em Portugal  (mais de três milhões), no Brasil (mais de 1,4 milhões), em Espanha e América  Latina (mais de quatro milhões) e nos EUA (mais de 1,4 milhões). Entre as  personagens mais fortes que criou, avulta, impressiva e encantatória, Blimunda,  a dos poderes mágicos, imortalizada em O Memorial do Convento. O escritor  e mulher deram o seu nome à residência que mantinham em Lisboa, num bairro  discreto colado à Praça de Londres.
"Voz original, inconfundível" (Clara  Ferreira Alves); apreciado em África como uma referência dos escritores que  neste continente escrevem em português (Mia Couto elogia nesta edição o seu  "empenho" em lhes dar "visibilidade") e no Brasil como um autor em que os  leitores se reconhecem como reconhecem em Vieira, Eça ou Pessoa (Eduardo Prado  Coelho), o crítico norte-americano Harold Bloom considerou-o, em 2003, "o mais  talentoso romancista vivo". Eduardo Lourenço chama-lhe, nesta edição, "ícone  cultural português". 
No "núcleo duro" da sua obra, este- ve "sempre a  preocupação com o ser humano, seja ele português ou universal", afirmando-se  como "um processo de constante auto-superação estética, temática e mesmo, em  certos aspectos, ideológica", sustenta o académico Carlos Reis.
A  acrescentar a estas marcas ao mesmo tempo individualizadoras e  universalizadoras, eram-lhe apontadas como características singulares a escrita  sem pontuação e sem maiúsculas nem discurso directo regulares; o imaginário,  dominado pelo realismo fantástico; as personagens (além de Blimunda, Madalena, a  quem atribui uma relação com Jesus, é também apaixonante); uma ironia permanente  e acerada; e as histórias irrecusáveis. A que acrescentaremos, como motivo de  fascínio junto de milhões de leitores, a forma como intervinha publicamente na  defesa de grandes causas. Dos Sem Terra e do zapatismo ao movimento  antiglobalização, à preservação do ambiente, à denúncia da guerra no Iraque e,  mais recentemente, aos ataques frontais a Berlusconi, o primeiro-ministro  italiano a quem chamava "a coisa". 
Amado e detestado
O ministro  da Cultura de Espanha, César António Molina, mostrou quanto o Estado espanhol  apreciava a opção de Saramago por Lanzarote, ao referir "a sorte de podermos [os  espanhóis] partilhar a existência do escritor", na inauguração da exposição  sobre a sua obra, em Novembro de 2007, na Fundação César Manrique, em Lanzarote.  Molina não hesitou em dizer algo que nenhum homólogo seu de Portugal - país onde  o romancista continuava a pagar impostos, mas sobre cujo futuro como nação  independente expressava fortes dúvidas - se atrevera até então a dizer assim, em  público: "Muitos de nós somos o que somos porque encontrámos no meio do caminho  a sua obra e vida."
Numa declaração que soa hoje como epitáfio, Molina  lembrou que o escritor "nunca se esqueceu de ajudar os mais desamparados e os  que não têm voz e que através da sua obra ganharam um lugar".
Antes e  após a atribuição do Nobel da Literatura, em 1998, Saramago foi distinguido com  muitas dezenas de doutoramentos honoris causa e proferiu centenas de  conferências que atraíam multidões, especialmente nos países latino-americanos. 
As suas declarações, tal como os livros, levantavam, não raras vezes,  ferozes polémicas do lado daqueles que não apreciavam quer o seu estilo, quer as  suas posições políticas e religiosas. 
O jornal oficial do Vaticano,  L'Osservatore Romano, apelidou-o, na altura do Nobel, de "comunista  inveterado". Saramago retribuiu, considerando que não se podia ter confiança  "nessa gente". E que a Igreja Católica se confundiu "muitas vezes - demasiadas  vezes - com uma associação de criminosos".
Não hesitou em definir-se uma  vez, na Antena 2, como um "comunista hormonal" ("da mesma maneira que a barba me  cresce, há uma hormona que fez de mim isto"). Tal não o impediu, porém, de  preservar a autonomia de pensamento e uma liberdade crítica que, não raras  vezes, o fizeram criticar figuras da iconografia comunista, como Fidel Castro,  discordar de posições oficiais do PCP, e mesmo apoiar publicamente candidatos do  PS (Mário Soares, nas presidenciais de 2005, e António Costa, nas autárquicas de  2009). 
Muitos dos seus detractores encontravam-se em Portugal,  reconhecia Saramago. "As pessoas param-me na rua. O que há é um sector oficial  que realmente não tem muita simpatia por mim. E tem-no manifestado, ainda que  agora já não tanto [...]. Ninguém é profeta na sua terra, mas também eu não  quero ser isso. Provavelmente terá a ver com o público. E também com o  acolhimento dos meios de comunicação", explicou ao PÚBLICO, em 2006. 
Infância rural
José de Sousa Saramago nasceu em 16 de Novembro  (18, diz o registo oficial, erradamente) de 1922, em Azinhaga do Ribatejo,  aldeia próxima da confluência do Almonda com o Tejo.
Filho e neto de  camponeses sem terra, aos dois anos trocou a aldeia pela capital, acompanhando o  pai, que se tornara guarda da PSP.
Viria a revelar, décadas mais tarde,  no seu último livro, As Pequenas Memórias (2006), que continuou ligado  até muito tarde à terra natal. Ali - "uma criança no meio do mundo olhando em  redor e dizendo: "Estou aqui"" - sente que se construiu. Por influência  inapagada dos avós maternos, com quem, já a residir em Lisboa, passou férias até  ao fim da adolescência. 
As origens humildes afastam-no do Liceu Gil  Vicente, onde permaneceu dois anos, e conduzem-no para a Escola Industrial de  Afonso Domingues, onde obtém 15 valores a Serralharia Mecânica, 15 a Francês e  11 a Português. 
Quedam-se por aqui as suas habilitações literárias. Tudo  o mais - e foi mais do que qualquer outro escritor português do seu tempo, em  termos de honrarias literárias e de reconhecimento público mundial - ganhou-o  numa aprendizagem solitária, longa e persistente que o levou (observações de  Gabriel Garcia Márquez no citado documentário televisivo) a começar a escrever  quando os outros costumam terminar e a continuar a escrever na velhice como se  tivesse 18 anos.
Depois de um primeiro emprego como serralheiro mecânico,  nas oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa, passa a auxiliar de escrita,  desenhador, funcionário da Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria da  Cerâmica (de que será afastado em 1949, por apoiar o candidato da oposição a  Salazar, Norton de Matos) e da Caixa de Previdência do Pessoal da Previdente.
Torna-se colaborador de produção e, por fim, editor literário da  Editorial Estúdios Cor. Traduz 48 livros entre 1955 e 1981, ano a partir do qual  se dedicará a tempo inteiro à escrita literária. 
"Esquecimento" do  PCP
Jornalista profissional desde 1972, assumiu no Verão Quente de 1975  as funções de director adjunto do Diário de Notícias. Veio a ficar  ligado, no exercício deste cargo, ao processo de saneamento de 30 jornalistas,  que haviam denunciado nas páginas do jornal a falta de pluralismo do matutino. O  episódio imprimiu ao seu perfil uma marca de intolerância ideológica que  contrasta com a tocante humanidade das grandes personagens da sua obra  literária.
A derrota da linha que apoiava sonoramente no Diário de  Notícias, em 25 de Novembro, deixou-o no desemprego. Pouco depois, ao  decidir procurar trabalho, constata que o PCP (a que aderira em 1969, a convite  do director da Portugália, Augusto da Costa Dias) não o convidara para um novo  projecto jornalístico já em marcha, O Diário, como fizera "a todos os  outros jornalistas" que tinham saído daquele jornal.
"Na altura não  gostei nada. Hoje continuo a não gostar, mas agradeço", comentou um dia,  lembrando que aquilo em que se tornou deve ter começado por alturas desses  últimos dias de Novembro em que testemunhou a derrota do projecto de "construção  do socialismo" de que o DN era "um instrumento". 
Até 1975,  explicou, tinha livros mas não se via como um escritor. Decide ir para o  Alentejo, aí vivendo de traduções, durante alguns anos. Acolhido em casa por  camponeses do Lavre, abre-se-lhe a porta para uma segunda vida, a da escrita  literária. 
Publica em 1977 o romance Manual de Pintura e  Caligrafia, na Moraes Editores. Dois anos depois, A Noite, primeira  de uma série de peças de teatro que inclui Que Farei com Este Livro?  (1980), A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987) e In Nomine  Dei (1993).
Em 1980, o romance Levantado do Chão, em que se  liberta das regras da pontuação e das maiúsculas, substituídas por um fluir  narrativo torrencial típico do discurso oral, define-lhe um estilo literário a  que o Prémio Cidade de Lisboa dá maior repercussão. 
Percorre o país,  numa encomenda do Círculo de Leitores, de que resulta o precioso Viagem a  Portugal, que Pilar del Rio considera "o livro perfeito", apesar de "mal  amado pelos media portugueses".
Reconhecimento e  exílio
Memorial do Convento, em 1982, confirma a sua forma  original de narrar histórias, numa prosa "misteriosa, alusiva, poética" (Luciana  Stegagno Pichio) em que se misturam erudição clássica e sabedoria popular. 
O livro marca a consagração definitiva do autor no país e abre-lhe, aos  60 anos de idade, as portas do reconhecimento internacional. "É muito melhor do  que O Nome da Rosa, de Umberto Eco", chega a escrever um crítico no  jornal italiano La Stampa. 
Será adaptado a ópera e ao teatro, em  Portugal e no estrangeiro. O autor recusa uma oferta de Hollywood para que seja  posto em filme. E outra do Brasil para passar a telenovela.
Segue-se em  1986 O Ano da Morte de Ricardo Reis - para muitos dos seus leitores (há  quem diga que também para ele) o seu melhor livro. 
Seis anos e três  romances depois (Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa e  Evangelho Segundo Jesus Cristo), já famoso em Portugal e na Europa, onde  multiplica edições e prémios, vê o seu nome riscado de uma lista de obras  candidatas ao Prémio Literário Europeu. Decisão do subsecretário de Estado da  Cultura Sousa Lara. O Evangelho atacava princípios que tinham a ver "com  o património religioso dos portugueses". 
O acto censório leva-o a um  processo de ruptura com o Governo de então, chefiado por Cavaco Silva. Fixa  residência na ilha espanhola de Lanzarote, num processo de "exílio literário"  que manterá até à morte, apesar de nos últimos anos ter adquirido uma pequena  vivenda em Lisboa, onde se deslocava com frequência.
"Maldição" do  Nobel
O Ensaio sobre a Cegueira (1995) ter-lhe-á valido o Prémio  Nobel de Literatura de 1998, tal a boa impressão que causou na Academia Sueca.  Foi isso pelo menos o que um seu membro, o poeta e romancista Kjell Espmark, lhe  revelou e Saramago contou anos mais tarde, no blogue que começou a escrever no  Verão de 2008. 
O anúncio do mais alto galardão literário do mundo foi  feito, como habitualmente, em 8 de Outubro. O Nobel distinguira pela primeira  vez um autor de língua portuguesa que "com parábolas sustentadas por imaginação,  compaixão e ironia, continuamente nos permite captar uma realidade  fugidia".
Na noite de 7de Dezembro seguinte, em cerimónia  televisionada, apre-senta-se ao Comité Nobel e ao mundo recuando a memória até  aos tempos de infância: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não  sabia ler nem escrever. (...) Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha  esses avós, e eram analfabetos um e outro." 
Os romances que se seguem ao  mais famoso prémio literário do mundo - A Caverna (2000), O Homem  Duplicado (2002), Ensaio sobre a Lucidez (2004) - são recebidos com  reservas por parte da crítica portuguesa. Fala-se em "maldição do Nobel". A  série de diários Cadernos de Lanzarote é especialmente causticada pela  exibição de prémios, de distinções, de ditirambos ao autor. Interrompe-a no  quinto volume, publicado pouco antes da cerimónia de entrega do Nobel.
Publicado em finais de 2005, As Intermitências da Morte constitui  um comovente hino testamentário (um violoncelista seduz a morte-mulher, para  quem interpreta uma suite de Bach) ao amor e à música, isto é, à vida humana. 
Escrita "com larguíssimos intervalos" e longamente prometida sob um  título que não veio a vingar (O Livro das Tentações), a autobiografia  As Pequenas Memórias (1996) debruça-se sobre a infância e a adolescência,  na Azinhaga e em Lisboa.
Na altura, disse-se tentado a fechar o círculo.  Considerava que esgotara, de algum modo, os temas, embora, premonitório,  admitisse escrever ainda "mais um livro ou dois".
O factor  Pilar
José Saramago foi casado com a pintora, gravadora e escultora Ilda  Reis, já falecida, de quem tinha uma filha, Violante. Viveu 16 anos com a  escritora Isabel da Nóbrega (Prémio Castelo Castelo-Branco, 1965), com quem  formou, segundo Fernando Dacosta, "um par fiel, glamouroso", nos meios  intelectuais lisboetas.
Aos 63 anos, "quando já não se espera nada",  encontrou "o que faltava para passar a ter tudo" - Pilar. Jornalista, Pilar  chegara de Sevilha a Lisboa para fazer o percurso de Ricardo Reis, tal como  descrito magistralmente pelo escritor, em O Ano da Morte de Ricardo Reis. 
O café que tomaram em Lisboa e um novo encontro meses depois em Sevilha  - por iniciativa de Saramago, que viajou de camioneta até lá - mudou a vida a  ambos. Casaram em Lisboa, em Outubro de 1988. Ele em vésperas de fazer 66 anos,  ela com 36; ambos com um casamento oficial anterior. 
Nunca mais deixaram  de andar juntos. "Se tivesse morrido aos 63 anos, antes de a conhecer,  morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora", disse  Saramago um dia, numa das várias muito belas declarações públicas de amor a  Pilar. 
A intensa ligação a Pilar (chegará a chamar-lhe, numa entrevista  na Antena 2, o seu outro Prémio Nobel) levá-lo-á a apagar das reedições dos  livros publicados até 1984 as dedicatórias a Isabel da Nóbrega: "À Isabel,  sempre", em Levantado do Chão (também dedicado a 16 elementos da União  Cooperativa de Produção Boa Esperança, do Lavre, Montemor-o- Novo, que o  acolheram e sem os quais, escreveu, "não teria sido escrito" o livro, mas cujos  nomes foram igualmente suprimidos, ficando apenas, em edição posterior, "À  memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados"); "À Isabel,  porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova", em Memorial do  Convento; e "À Isabel, outro livro, o mesmo sinal", em O Ano da Morte de  Ricardo Reis.
Os adversários não lhe perdoaram a atitude. Amigos que  muito o apreciam lamentaram-na profundamente.
Andaluza, a mais velha de  15 irmãos, Pilar é a tradutora para espanhol dos livros do marido - trabalho que  fazia quase em simultâneo com o acto de criação do escritor. Mas assume-se como  jornalista, acima de tudo. Manteve uma rubrica de intervenção cívica, durante  anos, na rádio. Pôs-lhe o nome de Blimunda não se rende.
Entre as  incumbências que competem a uma viúva, deverá agora (sugeriu Saramago numa  entrevista a José Carlos de Vasconcelos, seu amigo de longa data) organizar,  "para publicar", juntando-os à obra já feita, "um ou dois" volumes com cartas de  leitores, algumas delas "absolutamente extraordinárias, documentos humanos de  uma profundidade, uma beleza e emoção raras", que foram chegando "de toda a  parte" ao escritor.
Provocador de ideias
Sem temer ficar isolado  no debate, Saramago lançava no espaço público ideias fracturantes, quase sempre  contra a corrente ou mesmo politicamente incorrectas - o voto em branco, a fusão  de Portugal em Espanha, a irrelevância do 25 de Abril para atingir a democracia,  a semelhança da ocupação israelita da Palestina com Auschwitz, a provocação a  "deus, esse a quem chamamos senhor" e a quem "uma só criança das que morreram  feitas tições em Sodoma bastaria para [...] condenar sem remissão". 
Fazia-o de uma forma que surpreendia o leitor/ouvinte incauto: tirando  das premissas as conclusões menos conformes com os cânones. O seu era - disse um  dia numa entrevista na Antena 1 ao autor deste obituário - "o ponto de vista do  galinheiro". Referia-se aos tempos da juventude em que frequentou intensamente o  Teatro Nacional de São Carlos, cujos espectáculos via, grátis, mercê da bondade  de um porteiro amigo do pai. Longe e de cima (mesmo acima do "pó dos lustres" do  magnífico teatro barroco), era-lhe dado ver e ouvir os espectáculos de ângulos  diferentes dos que os viam da plateia ou dos camarotes, explicou.
Talvez  por isso, prevalecia nele a distância do cepticismo: "Tenho sempre um pé atrás  [porque sei que] nada é definitivo e que o motivo do riso de hoje pode amanhã  tornar-se em lágrimas." 
Dotado de uma grande facilidade de expressão  apesar da leve gaguez com que falava, deixou, além dos livros e das  conferências, um extraordinário acervo de declarações em entrevistas.
Nelas podemos acompanhar e em certos casos completar, dito por outras  palavras, normalmente mais directas, o essencial das preocupações e  interrogações que foi semeando na obra literária.
Sobre a democracia, a  criação literária, o papel do escritor, o jornalismo, Portugal, o mundo, Deus.
E sobre este mesmo acontecimento que aqui relatamos e em que é  protagonista - o seu desaparecimento da terra e a perspectiva de uma outra vida,  para lá da morte: "A finitude é o destino de tudo. O Sol, um dia, apaga-se".  com Raquel Ribeiro
Jornal "O Público", 19 de junho de 2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-