Após meio século de descaso e
equivocada visão social, as autoridades da cidade do Rio de Janeiro estão tentando
uma solução mais legal e menos populista. Sem ideologias nem objetivos
eleitoreiros, elas entenderam, afinal, que é impossível manter comunidades
"diferenciadas" dentro de uma área urbana sem ferir a igualdade dos
cidadãos. A inclusão social dos moradores das metrópoles depende inteiramente
da inclusão legal.
A inclusão legal significa o
seguinte: para ser um cidadão urbano legal o cidadão deve morar em imóvel
legalmente construído, seja próprio ou alugado; e deve também pagar todos os
impostos, taxas e tarifas fixados por lei. Ou seja, todos os serviços dos quais
é usuário: de água, de esgotos, de energia, de iluminação pública, de limpeza
urbana, de coleta de lixo e de telefone. Exatamente como os demais cidadãos de
sua cidade.
Essa sua contribuição lhe
permite exigir retribuições: escolas de primeiro e segundo grau, postos de
saúde, postos policiais, transporte coletivo oficialmente registrado,
atendimentos de emergência, redes de esgotos, Correios, vigilância sanitária,
vias de acesso com segurança, enfim, todo um conjunto de benefícios. Nada de
favores do poder público! Hoje, na quase totalidade das favelas, quando alguns
desses serviços existem, são considerados "bondades" oferecidas pelos
que ali exercem o poder paralelo! Cobram o que querem, dão ordens às famílias,
apavoram as mães, aliciam os jovens e os corrompem, fabricando bandidos...
A ilegalidade consentida foi
piorando muito ao longo dos anos. Chegou ao seu auge na década de 1980, quando
o então governador Leonel Brizola entregou as favelas do Rio, como capitanias
hereditárias, aos seus associados políticos. Fez mais: proibiu que qualquer
autoridade subisse os morros ou entrasse em suas vielas para estabelecer a
ordem pública ou dar segurança aos seus moradores.
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Foto: Gabriel Paiva/O Globo |
Vale, pois, perguntar: se a
causa verdadeira dessa tragédia criminosa era do conhecimento de todos, por que
nunca antes havia sido enfrentada de forma correta? Por que as autoridades do
Rio deixaram o poder paralelo chegar até onde chegou?
Por conivência. Por
cumplicidade. Por interesses pessoais. Pela importância eleitoral desses
redutos de votos dominados. Minas de ouro de lucros obscuros.
Foi a industrialização do País
que detonou os movimentos migratórios. Eles estão na origem das primeiras
favelas. A partir de 1930 e, principalmente, após 1950, esse processo ocorreu
em todas as cidades grandes. E ainda não parou. Nem a nova capital da República
escapou. Ao contrário, ela sofre no presente os mais intensos sintomas dessa
terrível doença: a maioria da população brasiliense mora nas dezenas de favelas
que circundam o equivocado projeto urbanístico de Brasília.
Muitos estudos revelam que,
nas favelas, as comunidades se comportam de modo diferente. Instalados ali sem
a proteção de autorizações legais, os seus ocupantes acabam perdendo a noção de
que existem leis para serem observadas e cumpridas.
Essa situação contamina todos
os setores da comunidade. Eles não adquirem o hábito de cumprir o que
determinam as leis. Isso não faz parte de seu dia a dia. O Estado, para eles,
não existe. O poder, ali, é exercido por quem dispõe de força.
Só obedecem a quem pode
intimidá-los: ou ao político que lhes arranjou aquele espaço; ou ao traficante
que lhes emprestou dinheiro para a laje; ou ao miliciano que, em troca de uma
suposta proteção, cobra uma taxa camarada.
Privados de serviços públicos
legítimos, esses moradores são obrigados a pagar água, luz, taxa para
edificação e "proteção". Um sistema de "impostos" paralelo,
que nada perdoa.
Diante desse quadro, é
extraordinária a coragem e a correção do modelo que vem sendo posto em prática
pelo atual chefe da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. A operação
de resgate da cidadania dos moradores de favelas, embora esteja custando uma
fortuna em matéria de recursos públicos, está sendo uma inesperada e
gratificante surpresa para nós, cariocas!
Quem sabe, diante de tão
magnífico exemplo, os três Poderes, em Brasília, acordem para a realidade e se
disponham, também, a realizar uma operação semelhante? Quem sabe eles resolvem
trazer o governo de volta ao clima de legalidade? Uma "UPP" no Planalto?
Sim. É disso exatamente que estamos precisando.
Exigir um comportamento mais
decente de todos os que ocupam cargos de comando no governo. Punir todos os
que, nas legendas que formam a famosa base de governo, agem como os traficantes
apadrinhados, aqui, no Rio, pelo caudilho brizolista, com a garantia da
impunidade.
O êxito das Unidades de
Polícia Pacificadora (UPPs) veio mostrar que é possível dar um choque de ordem
nessas áreas apodrecidas. Sem uma operação corajosa a favelização política que
ocorre hoje, no Brasil, vai continuar pelo País afora. E quem são os
assaltantes que desviam dos cofres públicos o suado dinheiro arrancado dos
brasileiros? São líderes de partidos e de sindicatos. Que são até aplaudidos
pelos comparsas. Qual a punição? Perdas de ministérios? Aposentadorias?
Afastamentos? Tudo para inglês ver... A mesma embromação usada para os
favelados: discursos, obras cosméticas, teleféricos caríssimos, passarelas
McDonald's-Niemeyer...
O alvo das UPPs é simples: o
morador da favela deve poder viver legalmente, sob a proteção das leis. Como
qualquer outro cidadão, com os mesmos direitos e os mesmos deveres. Pois esse
deve ser, também, o alvo para o País. Roubo praticado por companheiros e
aliados é crime. É ato ilícito. Vai contra a lei.
Se uma "UPP" em
Brasília não for instalada, se as punições não vierem, se a contemporização
continuar, se o império da lei vai esperar o início do ano que vem, se aqueles
milicianos e traficantes não forem punidos, então teremos alcançado uma façanha
impensável: o Brasil será a maior favela do mundo!
Título e Texto: Sandra
Cavalcanti, professora e jornalista, foi deputada federal e constituinte,
Estado de S. Paulo, 24-12-2011
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