Afonso Belisário
O que está a acontecer nos
subúrbios de Lisboa não tem nada de original. Odair Moniz é o George
Floyd da Cova da Moura – uma vítima do sistema e um caso paradigmático
da violência policial, de raiz racista. E quem disser o contrário, é
supremacista branco.
Acontece que não.
Com o devido respeito e
considerando o luto dos seus familiares e amigos, Odair tinha um extenso
cadastro criminal e as circunstâncias que levaram à sua morte não decorrem de
racismo sistémico, mas dos seus próprios atos, de natureza recorrente. O
registo criminal e essas trágicas ocorrências são públicas pelo que não vale a pena demorar o dedo na
ferida.
O que vale a pena sublinhar é
que este guião, já usado por diversas vezes por todo o Ocidente e com
consequências devastadoras no tecido social, gerando, para além da destruição
física de infraestruturas, a divisão, a polarização e a dramatização de
trincheiras, que de metafóricas podem rapidamente passar ao concreto, não leva
a lado nenhum que seja menos que infernal.
E, o que é mais, a narrativa de vitimização daqueles que dificilmente podem ser qualificados como vítimas, se não deles próprios, acaba por prejudicar os cidadãos cujas vidas são de facto negligenciadas pelas máquinas do poder. Aqueles que cumprem abnegadamente empregos mal pagos e extenuantes, aqueles que dependem da disfunção quotidiana dos transportes públicos para se deslocarem dos subúrbios para os centros urbanos, aqueles que vivem em complexos habitacionais degradados, assolados pela droga e por conflitos étnicos e controlados por ‘empresários’ como Odair Moniz.
Se marginalizados já viviam,
vão viver à margem acrescidamente, porque a polícia, castigada por cumprir a
sua missão, desistirá de impor a lei e a ordem nesses territórios; porque os
serviços públicos serão de pior qualidade, por falta de condições de segurança
para operarem, porque o estigma de se residir neste bairro ou naquele, de
infame ressonância, será porventura mais profundo. Mais visível.
Tanto mais que, aqueles que
usam a morte de um homem para acusar toda uma sociedade de racismo, estão
somente a virar as pessoas umas contra as outras. E nessa viragem, de violenta
psicologia, serão sempre os mais pobres, os mais desfavorecidos económica e
socialmente, a pagar o preço mais alto.
Até porque a classe média,
também ela sofredora de condições económicas difíceis, também ela desprotegida
perante a ganância das corporações e a clara hostilidade das elites, esmagada
pela servitude fiscal, empobrecida por políticas económicas, monetárias e
energéticas asininas e pela inflação, aviltada pelo neoliberalismo corporativo,
garrotada pelos bem pensantes e pelos censores das academias e das redacções e
dos gabinetes da decisão política, já não tem pena de ninguém. Já não tem
paciência para as vítimas. Já não tem tolerância para autocarros em chamas e
sobranceria moral.
Até porque as classes mais
favorecidas, essa minoria de crocodilos chorosos que anda de mão dada com os
radicais de esquerda para responsabilizar o resto da população por todos os
problemas da civilização (factuais ou fabricados), não quer saber realmente do
bem estar e da qualidade de vida dos pobres ou dos remediados. A agenda das
elites não é tirar os pobres da pobreza. É empurrar os remediados para a
miséria.
Odair é assim transformado
numa espécie de arma branca da guerra fria – e civil – que insidiosamente se
trava nas sociedades ocidentais entre os protagonistas das superestruturas
políticas e económicas e as massas. Sendo certo que está a ser utilizado pelos
primeiros para divisão e enfraquecimento dos últimos.
Este repugnante exercício de propaganda do Expresso é exemplo desse método.
E quando Luís Montenegro, que
acordou para os acontecimentos com o sonambulismo elitista que se lhe
reconhece, e que enquanto o Bairro do Zambujal ardia, se entretinha com
banquetes de recepção ao
tirano Sánchez e com lamentos fúnebres
por Marco Paulo, se esquece, nas suas pomposas declarações à
imprensa, de reafirmar e legitimar a atividade policial nestes bairros onde ser
polícia é objetivamente uma profissão de alto risco, só está a contribuir para
o caos e para a intensificação das tensões sociais.
E Marcelo Rebelo de Sousa há de
fazer pior ainda. Porque podemos sempre contar com o atual Presidente da
República para deitar gasolina sobre o incêndio que arde no coração da
sociedade portuguesa.
Título e Texto: Afonso
Belisário, Oficial fuzileiro (RD, Polemista, Português de Sagres, ContraCultura,
28-10-2024
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