Rafael Nogueira
Um momento decisivo na vida de qualquer ser humano, mais decisivo até do que aprender a ler, alcançar o direito de voto ou receber um diploma, é aquele em que percebe que suas lembranças não começaram com o seu nascimento — e que sua história pessoal, por mais valiosa que seja para sua identidade, não é o limite do real.
É o momento em que o indivíduo
se descobre herdeiro. E, sendo herdeiro, já não é só alguém cujos anseios,
dores e expectativas se encerram em si mesmo, mas também parte de algo maior:
de uma família, de uma cidade, de um povo, de uma civilização. É nesse instante
que ele começa a deixar de ser um átomo errante, todo ensimesmado.
Muitos confundem memória com
nostalgia. Mas lembrar não é chorar por ontem: é reconhecer que há um antes — e
que esse antes nos forma, quer gostemos dele ou não. A memória nos insere num
fluxo maior, e isso, no fundo, é o que dá sentido ao presente.
Maurice Halbwachs, sociólogo francês, chamou isso de memória coletiva: a ideia de que lembrar não é um ato isolado, mas partilhado. Ninguém se lembra sozinho. Ao recordar um Natal da infância, evocamos mais do que nossa emoção: evocamos canções, gestos, rituais — de uma cultura que nos transcende, e que nos chegou pelos crivos da família, da pátria, da religião.
Santo Agostinho, em suas
Confissões, ensinou que o tempo só existe realmente no presente. O passado se
faz presente como memória; o futuro, como expectativa. Lembrar é, portanto,
manter vivo aquilo que já se foi. Esperar é antecipar, no agora, aquilo que
ainda virá.
E é nesse presente alargado
que entra a História. Enquanto disciplina científica, ela é jovem: foi no
século XIX que passou a seguir o paradigma da ciência moderna, com seus métodos
críticos, seu rigor documental, sua distância profissional. Isso é bom, e
necessário. Feita com seriedade, a História corrige erros, evita delírios,
ilumina o que o tempo obscureceu, com altos graus de certeza.
Mas, ao tornar-se ciência, ela
também se afastou de uma necessidade vital: a de apresentar às novas gerações a
trajetória, os valores, as crenças e os sonhos das gerações que as precederam —
e que construíram grande parte da realidade a que pertencem, com seus males e
benesses. Isso é pertencer não apenas à humanidade abstrata, mas à linhagem
concreta dos que vieram antes de nós. Àqueles a quem devemos algo. Àqueles de
quem herdamos não só sangue, mas ideias, símbolos, deveres.
A criança que aprende sobre a
Independência ou a Abolição começa a perceber que não nasceu ontem. O adulto
que lê as cartas de Caminha ou os sermões de Vieira intui que seu nome não está
sozinho no mundo.
Memória garante continuidade.
Só quem tem raiz pode frutificar. E só quem sabe o que herdou pode imaginar o
que legar.
Esse olhar mais filosófico da
História é o antídoto contra o narcisismo de época. Ao estender a memória, o
indivíduo se reconhece como elo numa corrente que veio de longe, e que segue ao
longe. E então entende que há algo maior do que ele mesmo — e que isso não
arranha uma só partícula de sua dignidade. Porque, sim, ele é um todo em si.
Mas é também parte de um todo maior.
Título e Texto: Rafael Nogueira, O Dia, 2-7-2025; Arte: Paulo Márcio
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