quarta-feira, 30 de julho de 2025

O estranho casamento entre a esquerda e o islamismo radical

A pergunta é simples: no caso do eterno conflito israelo-palestiniano, por que motivo defende a esquerda LGBT ocidental, ainda que de forma indireta ou envergonhada, grupos terroristas islâmicos como o Hamas, e manifesta o que parece ser um ódio sistemático e recorrente a Israel e aos judeus?

João Maurício Brás

Uma perplexidade comum e legítima de um ocidental atento refere-se à atitude dos ativismos LGBT, especialmente os de esquerda, e à sua condenação de muitos aspetos das democracias ocidentais sempre que não se alinhem com os seus pressupostos ideológicos, ao mesmo tempo que demonstram aceitação, quando não simpatia ativa, por aspetos do islamismo que rejeitam frontalmente quer a homossexualidade, quer a igualdade plena entre homens e mulheres, crentes e não crentes.

A pergunta é simples: no caso do eterno conflito israelo-palestiniano, por que motivo defende a esquerda LGBT ocidental, ainda que de forma indireta ou envergonhada, grupos terroristas islâmicos como o Hamas, e manifesta o que parece ser um ódio sistemático e recorrente a Israel e aos judeus? Quanto tempo sobreviveria, de forma assumida e livre, um homossexual sob o regime que controla Gaza? Qual é o estatuto jurídico, social e simbólico das mulheres nesse território? Qual é a legislação vigente sobre a homossexualidade em Gaza? E, mais amplamente, quantos países islâmicos consideram a homossexualidade um crime grave, em muitos casos punível com a morte? Será ou não verdade que, em múltiplos regimes muçulmanos, a liberdade da mulher em vestir-se como deseja, usar o penteado que quiser ou exercer qualquer profissão sem autorização masculina continua a ser negada?

Refira-se que até a Autoridade Palestinana pede a rendição do Hamas, e não se percebe como de modo ainda que indireto países e organizações ocidentais apoiam um grupo terrorista que usa o território de Gaza e mantem um povo sequestrado.

Em 2025, quantas manifestações organizadas pela esquerda portuguesa houve contra Israel, em nome da Palestina, da “resistência” ou do “antissionismo”? E quantas foram organizadas pelas mesmas forças em defesa das mulheres iranianas, dos homossexuais afegãos, dos cristãos perseguidos em países islâmicos ou das minorias religiosas na Nigéria e no Paquistão?

É possível, mesmo cedendo ao relativismo cultural, admitir que cada sociedade tem os seus costumes e códigos internos. Mas pensar é um dever. Perguntar é um direito. E, nesse direito, cabe uma indagação séria: por que razão certos movimentos políticos e os seus ativismos, quase sempre ligados à esquerda radical ocidental, demonstram uma tolerância complacente e acrítica face a regimes e ideologias que violam flagrantemente os direitos e valores que os próprios dizem defender no Ocidente?

No caso do conflito israelo-palestiniano, a crítica ao comportamento do governo israelita é não apenas legítima, como natural em qualquer sociedade democrática e pluralista. Nenhum país está acima da crítica, muito menos Israel, cuja política interna é intensamente debatida pelos próprios israelitas. O problema não está na crítica, mas no desequilíbrio. Do lado da esquerda radical, a crítica a Israel tende a tornar-se total, obsessiva, absoluta. Não existe qualquer equivalente em relação às práticas islamistas, quer nas zonas palestinianas, quer no vasto mundo islâmico.

Julga-se Israel segundo padrões escandinavos e democráticos, o que não seria um problema se se julgasse o Hamas, o Irão ou o Catar pelos mesmos padrões. Mas não. Nestes casos, prevalece o relativismo condescendente, quando não a justificação moral. O resultado é uma inversão perversa: o único Estado liberal e pluralista da região, onde os direitos das mulheres e dos homossexuais estão legalmente protegidos, é vilipendiado como inimigo absoluto. Já os seus vizinhos teocráticos e autoritários são tratados como vítimas inocentes ou como heróis da “resistência”.

Esta inversão moral e política é talvez o sinal mais evidente de que a esquerda radical ocidental perdeu o sentido da verdade e da justiça. Substituiu a coerência ética por uma fé ideológica. O que move esses movimentos já não é a defesa universal dos direitos humanos, mas o ódio à civilização ocidental, às suas raízes judaico-cristãs, ao capitalismo liberal, à tradição democrática e às formas de vida que emergem de uma cultura de liberdade ordenada.

A pergunta permanece, com toda a sua crueza: porque é que os mesmos ativistas que exigem direitos absolutos no Ocidente são tão silenciosos ou cúmplices face a regimes que perseguem e matam precisamente aquilo que eles próprios são?

Exemplos da apologia da Palestina, governada pelo Hamas e do ódio sistemático a Israel são hoje comuns na esquerda radical ocidental, mesmo quando isso contraria frontalmente os valores que diz professar.

Marchas LGBT como Queer for Palestine surgiram em cidades como Nova Iorque, Londres, Cardiff e Berlim, com slogans como “No queer liberation without Palestinian liberation” ou “Profiting from genocide”. Em Washington D.C. e São Francisco, ativistas LGBT protestaram contra eventos do orgulho LGBT, acusando Israel de “pinkwashing”. Em 2017 e 2019, marchas Dyke March em Chicago e Washington proibiram a presença de bandeiras judaicas com a Estrela de David, em nome da solidariedade com os palestinianos, alegando que esses símbolos contrariam os valores antirracistas declarados.

O movimento académico BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) tem forte apoio em dezenas de universidades nos Estados Unidos e no Reino Unido. É promovido por estudantes e associações de esquerda que exigem o boicote a universidades, artistas, empresas e centros científicos israelitas. Porém, raramente aplicam essa mesma pressão contra regimes islâmicos, mesmo quando estes violam sistematicamente os direitos humanos. Em várias instituições, produtos de empresas israelitas foram removidos dos campi após campanhas promovidas pelo BDS.

Entre 2023 e 2024, dezenas de departamentos universitários declararam apoio público ao movimento. Oradores judeus, mesmo os de orientação progressista, foram cancelados ou não condenarem explicitamente Israel. Em universidades da Ivy League, como Harvard, Stanford ou Columbia, ativistas pró-Palestina foram aplaudidos, enquanto vozes judaicas foram silenciadas sob a acusação de “colonialismo”.

Jeremy Corbyn, ex-líder do Partido Trabalhista britânico, descreveu membros do Hamas e do Hezbollah como “meus amigos”. Participou em eventos com Khaled Mashaal, líder do Hamas, e noutros encontros em que estas organizações foram homenageadas. Apesar de mais tarde se ter arrependido da expressão, o impacto político e cultural dessas declarações permanece até hoje, sendo recuperado por sectores radicalizados da esquerda britânica.

Judith Butler, referência internacional do pensamento queer e uma das principais teóricas da ideologia de género, afirmou que “entender o Hamas e o Hezbollah como movimentos sociais progressistas, de esquerda, parte da esquerda global é extremamente importante”. A frase foi amplamente interpretada como uma legitimação indireta destas organizações, apesar das suas práticas teocráticas e terroristas. Butler defendeu boicotes e sanções contra Israel, insistindo numa leitura anti-imperialista dos conflitos no Médio Oriente, frequentemente sobrepondo essa grelha interpretativa à condenação clara da violência. Mais tarde, afirmou tratar-se de uma análise descritiva, e não de um apoio às táticas do Hamas ou do Hezbollah. Contudo, a sua posição tornou-se representativa de uma tendência ideológica mais ampla: a justificação do inaceitável através da invocação do “contexto histórico”. Em 2024, Butler reacendeu a polémica ao qualificar os ataques do Hamas de outubro como “atos de resistência”, recusando categorizá-los exclusivamente como terrorismo ou manifestação de antissemitismo.

Em França, setores da esquerda identitária mantêm uma hesitação notória em condenar os motins antissemitas nas banlieues após confrontos em Gaza. Preferem preservar alianças com bairros islamizados do que enfrentar o crescimento real do ódio racial e religioso. O discurso público raramente denuncia slogans como “Morte aos judeus”, mesmo quando surgem em manifestações autodeclaradas “anticoloniais”.

No campo feminista, o paradoxo repete-se. Ativistas ocidentais como Linda Sarsour elogiaram publicamente a sharia e defenderam o uso do véu islâmico como símbolo de “empoderamento feminino”, ignorando os contextos coercivos em que essa imposição ocorre. Algumas revistas como a Elle celebraram o hijab como forma de resistência, omitindo por completo a repressão legal e cultural vigente nos países onde o seu uso é obrigatório. A escritora iraniana Marjane Satrapi criticou esse silêncio cúmplice, acusando o feminismo ocidental de trair as mulheres que vivem sob ditaduras islâmicas.

O caso de Butler é emblemático. Mostra até que ponto uma das mais influentes ideólogas do progressismo contemporâneo se recusa a condenar, sem ambiguidade, um grupo que oprime homossexuais, subjuga mulheres e impõe uma ordem teocrática. O terrorismo, desde que dirigido contra o “Ocidente colonial”, pode afinal ser reclassificado como “resistência”.

A pulsão antissemitista de parte da esquerda europeia tem raízes históricas complexas, mas as suas causas mais evidentes hoje prendem-se com uma simplificação cognitiva profundamente enraizada: a tendência para identificar povos muçulmanos e grupos islamistas como vítimas sistémicas do Ocidente. Essa visão deriva da ideologia interseccional e do pensamento pós-colonial, hoje dominantes nas universidades e nos movimentos progressistas, sobretudo nos Estados Unidos.

Para a esquerda identitária, o Islão enquanto cultura não ocidental é visto como parte dos oprimidos históricos, vítimas do imperialismo, do racismo e da supremacia branca. Essa grelha de leitura conduz a alianças políticas com forças que, em qualquer outro contexto, seriam tidas como absolutamente incompatíveis com os valores que a própria esquerda diz defender.

Este fenómeno é particularmente visível na conivência, direta ou indireta, de certos sectores progressistas com o Hamas e outras organizações islamistas. O antiamericanismo e o anti-israelismo funcionam como lentes morais absolutas, sobrepondo-se a qualquer outra consideração ética ou racional.

A lógica binária da esquerda pós-moderna funciona sempre segundo a grelha abstrata dos opressores versus oprimidos. Nessa estrutura mental, a coerência doutrinária e as consequências práticas são sistematicamente ignoradas. O Islão radical é desculpado como resistência anti-imperialista. A homofobia islâmica é relativizada como prática cultural. Israel é demonizado como colono branco. E os judeus bem-sucedidos no Ocidente são muitas vezes vistos como privilegiados brancos.

Mais uma vez, a posição da esquerda só se compreende à luz de uma lógica política profundamente incoerente, baseada numa hierarquia moral de vítimas, onde a identidade coletiva e o ressentimento histórico se sobrepõem à consistência ética.

Trata-se de um caso flagrante de cegueira moral seletiva, praticada em nome de uma pretensa luta contra o Ocidente opressor. E essa incoerência é, talvez, o sinal mais revelador da falência filosófica, ética e política da esquerda interseccional contemporânea.

A esquerda radical ocidental, ao pactuar com ideologias que negam os direitos que proclama defender, trai não apenas os seus próprios princípios, mas também as vítimas reais dessas opressões. Não é a justiça que a move, mas o ressentimento; não é a coerência ética, mas a obsessão ideológica. Ao inverter os papéis de vítima e agressor, converte o terrorismo em resistência e o liberalismo em tirania. E nesse espelho moral distorcido, revela-se a sua falência mais grave: a substituição da verdade pelo dogma, da compaixão pela narrativa, e da liberdade pela ideologia.

Título e Texto: João Maurício Brás, SOL, 29-7-2025, 15h08

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