Há um juiz que quer saber como um jornalista passa os tempos livres
Olá Jim Pereira,
Portugal atravessa um momento
de inquietante regressão democrática. Meio século depois da Revolução dos
Cravos, os mecanismos institucionais que deveriam salvaguardar os direitos
fundamentais começam a tornar-se os seus principais agressores – tudo sob o
manto morno da normalidade administrativa. Já não se trata de actos
excepcionais. Trata-se da institucionalização do abuso sob a forma de rotina.
Do automatismo inquisitório que devora, com papéis timbrados e formulários
absurdos, o que resta da dignidade dos cidadãos.
Falo, sim, na primeira pessoa. Não por vaidade – mas porque o que está em causa é mais do que um processo judicial. É o sintoma de um sistema que já não reconhece os seus próprios limites. Em Setembro começa o meu julgamento no Porto, após ter sido acusado pelo médico Gustavo Carona de 31 crimes de difamação. Um processo movido contra mim, por ter exercido a crítica pública, por ter respondido, por ter escrito. Por não me ter calado.
Gustavo Carona, médico durante a pandemia, protagonizou momentos de exaltação pública, incentivando um clima de alarme e de exclusão dos que divergiam da narrativa oficial. Empurrou o discurso para a hostilidade e mesmo para o ódio. O meu “crime” foi recusar-me a alinhar com essa moral sanitária de palanque, e exercer, como cidadão e depois como jornalista e director do PÁGINA UM, o dever de contraditório e de sátira. A liberdade de expressão, de que tantos gostam de se apropriar quando lhes convém, parece ser, para certos sectores, uma licença condicional: vale para a militância, mas não para a crítica.
Não solicitei abertura de
instrução. Porque, desde o início, vi neste processo não apenas uma tentativa
de intimidação, mas também uma oportunidade. Ser julgado – de forma pública e
transparente – é o que desejo. Porque a absolvição será o meu selo de razão, de
liberdade de expressão e de compromisso com a verdade jornalística.
Aquilo que nunca esperei, no entanto, foi o que se passou a seguir.
Sem qualquer condenação prévia, sem cadastro, nem sequer uma multa de trânsito ou uma dívida fiscal ou á Segurança Social de um cêntimo, e tratando-se de um processo por alegada difamação em contexto escrito, fui surpreendido por um despacho judicial que ordena à Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) a realização de um relatório social sobre mim – como se de um recluso em transição penal se tratasse.
Esse relatório inclui, entre
outros pontos, a investigação sobre, “em especial“, conforme despacho do
juiz:
·
o ambiente familiar em que se formou a minha
personalidade;
·
as minhas habilitações literárias e o nível de
aproveitamento;
·
o ambiente social em que me insiro;
·
a minha situação familiar e profissional;
·
a ocupação dos meus tempos livres;
·
e, claro, a minha situação económica.
Repito: trata-se de um
processo por difamação, por palavras escritas. E já me vejo reduzido a objecto
de vigilância institucional, como se a Justiça estivesse mais interessada na
arquitectura do meu lar do que na substância dos meus argumentos.
Fui convocado pela DGRSP para uma “entrevista”, precedida da entrega de um inquérito em papel que roça o grotesco. É um formulário que parece saído de uma casa de correção do século XIX, onde se confundem necessidades sociais com devassidão institucional. A técnica que me atendeu – de forma correcta, apesar de tudo – apresentou-se com a naturalidade mecânica de quem cumpre ordens superiores. O problema não era ela. Era o que representava.
![]() |
Instalações da DGRSP na Avenida Almirante Reis, em Lisboa: onde a dignidade fica à porta. |
O questionário, com o selo da
DGRSP, começa por perguntar se sou solteiro, casado, divorciado ou em união de
facto. Quer saber a composição do meu agregado familiar, o nome e a idade de
cada elemento, o rendimento de cada um. Pergunta se vivo em moradia ou
apartamento, se tenho casa-de-banho com água canalizada, rede de esgotos e
electricidade. Quer saber se os vizinhos me respeitam, se tenho
desentendimentos, e se me ocupo de “tarefas domésticas”. E quer o meu contrato
de trabalho, se o tiver. Sim, em 2025, o Estado português ainda pergunta se os
vizinhos respeitam o arguido.
Pergunta também se tenho
médico de família – e se sim, o seu nome –, se estou doente, se frequento algum
tratamento médico, se já tive contactos – não explicita de que género – com os
tribunais, a polícia, os serviços prisionais e os serviços de reinserção.
Mas mais escandaloso ainda foi o que a técnica me solicitou na entrevista: que apresentasse, um por um, comprovativos de abertura de actividade nas Finanças, os certificados das minhas três licenciaturas e do meu mestrado, e o diabo a quatro. Como se o meu currículo – público, acessível, auditável – não valesse nada para o Estado. Como se o jornalista, para ser tratado com respeito, tivesse de provar por escrito o que o seu trabalho demonstra há décadas. Quiseram-me ali para um ritual de humilhação burocrática. Não uma avaliação social – mas uma suspeição ontológica.
![]() |
Inquérito da DGSRP para elaboração do relatório social para cumprimento do despacho do juiz. |
E quando recusei responder a
certas perguntas – como a da composição do meu agregado ou a descrição do meu
ambiente familiar –, fui informado de que isso poderia ser entendido como
“falta de colaboração”. Ora, isto é precisamente o reverso do Estado de
Direito. Porque exercer o direito à reserva da vida privada (artigo 26.º da
Constituição), à liberdade de expressão (artigo 37.º) e à presunção de
inocência (artigo 32.º) nunca poderá ser considerado um sinal de rebeldia. Pelo
contrário: é um acto de resistência legal.
Aliás, só quase uma hora
depois de ‘debate’, acabei por conseguir que aceitassem o documento que
previamente tinha redigido sobre esta matéria. Mas até isso foi difícil.
Hoje, observa-se uma perigosa
tendência para a normalização do abuso. Quando um arguido, ainda mais sendo
jornalista, acusado de difamação, é escrutinado ao nível da intimidade, como se
estivesse já condenado, e fosse por homicídio, por violência doméstica ou por
tráfico de droga, é porque os juízes perderam o senso da proporcionalidade.
Quando um inquérito social nem sequer tem previsto, na parte da Escolaridade/Formação, a inclusão da alternativas sobre a frequência (e conclusão) de ensino superior, mas já questiona as minudências da residência (água canalizada, electricidade, redes de esgotos, conforto e privacidade), demonstra que o modelo subjacente não visa avaliar com rigor o percurso ou a posição social do arguido, mas antes reduzi-lo a um perfil de carência presumida, como se todo e qualquer acusado fosse, à partida, um desadaptado social em vias de reintegração.
É a inversão perversa da lógica do Direito — e a consagração de um estigma institucionalizado —, onde se apaga a fronteira entre a justiça e o assistencialismo punitivo.
E quando o aparelho do Estado
exige provas documentais para tudo – até para diplomas que são do (re)conhecimento público – é
porque o sistema deixou de confiar na sua própria transparência.
O PÁGINA UM, que
dirijo, já demonstrou – em tribunal – que o poder judicial, por vezes, se
arroga acima da lei. Um dos processos administrativos que movemos contra o
Conselho Superior da Magistratura levou o próprio presidente (e simultaneamente
presidente do Supremo Tribunal de Justiça) a ser advertido pessoalmente com
multa por incumprimento de uma decisão judicial. Se isto sucede ao topo do
sistema, o que esperar das suas ramificações?
Não está aqui apenas em causa
a minha defesa pessoal. É a defesa de todos os que ainda acreditam que ser
jornalista em Portugal é mais do que ser porta-voz do sistema. Que ainda
acreditam que o contraditório, a sátira e a exposição do poder são parte da seiva
da liberdade. Que não aceitam ser classificados, anotados e arquivados como
potenciais réus morais por opinarem de forma incómoda.
Aquilo que está em causa não é
a minha vida privada. É a nossa liberdade pública. E se a justiça continuar
neste caminho, amanhã o formulário será para todos.
Espero que haja reacções e que
não reine um silêncio cúmplice no meio jornalístico como em outras situações.
Um silêncio que lembra — com ironia amarga — a antiga fórmula usada nos
tribunais portugueses: “aos costumes, disse nada.”
Dita por réus sem passado criminal, esta frase era um acto de defesa; mas dita hoje por cidadãos e instituições perante o avanço de uma justiça que tudo quer vigiar e tudo quer devassar, transformando uma democracia num simulacro, é um acto de rendição. Tornou-se símbolo de uma sociedade que aceita os atropelos da autoridade com a mesma passividade com que um arguido habituado à sala de audiências responde ao oficial de diligências.
Mas eu, como jornalista, como cidadão e como homem livre, não digo nada aos costumes — por uma razão simples: é precisamente contra esses costumes que levanto a voz. Não se deve aceitar que o silêncio se transforme em regra e a humilhação em norma. Não se deve aceitar que a liberdade de expressão, de crítica e de privacidade seja degradada a favor de um sistema que, disfarçado de legalidade, anda desejoso de reprimeir o espírito livre.
Se este meu julgamento — e um
seguinte, que este ano, ainda me há-de colocar defronte das acusações da
Gouveia e Melo, da Ordem dos Médicos, do ex-bastonário Miguel Guimarães e de
dois médicos sem coluna’ (Filipe Froes e Luís Varanda)— servir para alguma
coisa, que sirva para isto: não disse nada aos costumes. Mas direi tudo contra
os abusos que deles derivam — porque é essa, afinal, a função do jornalista
numa democracia: falar quando o poder preferia que se calasse.
Pedro Almeida Vieira
Director e jornalista
do PÁGINA UM
Esperemos que continue a
considerar que aqui encontra informação de relevo e análises que obriguem a uma
reflexão sobre temas da actualidade fundamentais a todos nós.
Para que possamos continuar a fazer-lhe chegar notícias de
qualidade, mais e com a mesma qualidade desde que nascemos em Dezembro de 2021,
apelamos a que, dentro do que lhe for possível,
continue a apoiar o PÁGINA UM e a fazer parte deste jornal
que vive apenas de e para os seus leitores.
O jornalismo independente DEPENDE dos leitores.
Obrigado por todo o seu apoio.
A Direcção do PÁGINA UM
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-