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| Velho Triste (Às Portas da Eternidade), Vincent van Gogh, 1890. Wikipedia |
Sempre me intrigou a facilidade com que se confunde pensar com repetir fórmulas. A política, e a democracia com ela, tornou-se um território onde se exige alinhamento antes mesmo do raciocínio. Pensar passou a ser suspeito. Ainda assim, continua a ser isso: um acto solitário, desconfortável e quase sempre mal-visto.
A legalidade é simples: cumpre-se a lei.
A legitimidade não é. Exige aceitação continuada, confiança mínima e respeito por limites. Um governo pode manter a forma democrática e ainda assim esvaziar o conteúdo. Pode ser legal e tornar-se estranho à sociedade que governa. A história recente não nos deixa esquecer isso.
O populismo surge aqui como espelho e distorção. Apelar ao povo não é um desvio; é a própria base da democracia. O problema começa quando alguém decide que o povo é apenas quem concorda. Quando a pluralidade desaparece e o mundo se divide entre “os bons” e “os maus”, a democracia deixa de ser exercida. Passa a ser usada.
A censura também mudou de pele. Já não precisa de decretos nem de carimbos. Opera por pressão social, polarização moral e medo de exclusão. É mais eficaz porque é invisível; produz autocensura. E quando ninguém assume a autoria, “foi o consenso”, “foi a ciência”, “foi o algoritmo”, “foi o que as pessoas pediram”, instala-se a forma mais confortável de autoritarismo: aquela em que ninguém se sente responsável.
Defendo a liberdade de expressão sem reservas sentimentais. Não porque acredite que todos dizem a verdade, mas porque a mentira não se combate com silêncio imposto. Já existem leis para crimes concretos, difamação, ameaça, incitação à violência. O que não conheço, nem aceito, são leis que proíbam o contraditório. O erro combate-se com confronto, não com interdição.
Dizem que esta posição é ingénua num mundo assimétrico. Discordo. A palavra é talvez o último mecanismo que não nasce hierárquico. Regular a expressão é reintroduzir poder onde ainda existe algum plano comum. A chamada “mentira sistémica”, quando existe de facto, nunca vem da dissidência. O que é sistémico vem sempre do centro, não das margens.
A política não é neutra. Nunca foi. Envolve escolhas morais. Sem moral, não saberíamos distinguir o aceitável do intolerável. O erro não está em ter valores, mas em transformá-los em arma. Quando a política se converte numa disputa entre virtuosos e imorais, deixam de existir adversários. Passam a existir inimigos. E esse é sempre o princípio do fim das sociedades plurais.
Pensar não é decorar definições.Pensar é sustentar posições sabendo que incomodam.
É recusar licença para existir intelectualmente.
E aceitar que a lucidez, quase sempre, dói.
Título e Texto: Silvana Lagoas, ContraCultura, 20-12-2025

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